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sexta-feira, 21 de abril de 2023

SINTAGMAS

 




Sintagma é uma unidade gramatical formada por uma ou mais palavras que se combinam para desempenhar uma determinada função sintática em uma frase. O sintagma é uma das principais unidades da sintaxe, que é o estudo da estrutura das frases e das relações entre as palavras dentro delas.

Cada sintagma geralmente possui um núcleo, que é a palavra mais importante do sintagma, e outros elementos que podem modificar ou complementar o núcleo. Os sintagmas são importantes porque ajudam a entender como as palavras se combinam para formar frases significativas em um idioma

A palavra "sintagma" tem origem no grego antigo, derivada do termo "syntagma", que significa "arranjo, ordem ou disposição". Na gramática grega, "syntagma" era utilizado para se referir a uma unidade gramatical que consistia em duas ou mais palavras que estavam dispostas em uma determinada ordem para formar uma expressão com sentido completo.

Na Grécia Antiga, "syntagma" era um termo militar que se referia a uma formação tática utilizada pelas unidades do exército grego durante as batalhas. Cada "syntagma" era composto por um certo número de hoplitas, soldados de infantaria pesada que utilizavam lanças, escudos e armaduras. Durante a batalha, os "syntagmas" se movimentavam em direção ao inimigo em formação, mantendo a coesão e a proteção dos soldados.

Os "syntagmas" (que, juntos, formavam as “falanges”) eram uma parte fundamental da estratégia militar grega, sendo utilizados por exércitos como o de Esparta e Atenas em diversas batalhas da época. A formação tática dos "syntagmas" foi desenvolvida ao longo do tempo e aprimorada pelos militares gregos, contribuindo para o sucesso de muitas batalhas, consistindo em um alinhamento de vários blocos de batalhões, cada uma de suas 16 filas numerando 16 homens, para um total de 256 em cada unidade. Cada sintagma era comandado por um sintagmatarca, que - juntamente com seus oficiais subordinados - formaria a primeira fila de cada bloco.

Seria possível comparar o sintagma linguístico (rede de significantes em busca de significados) com as falanges gregas em busca de vitória, com os sintagmatarca (S1 - essaum) no comando?

segunda-feira, 17 de abril de 2023

CRÔNICA: Meu gato lacaniano


Igual ao gato de Schroedinger, que podia estar muito bem vivo ou muito bem morto, dependendo do gás que ele respiraria dentro de uma caixa, o gato lacaniano pode muito bem estar dentro de uma letra ou fora dela, respirando ou não o pó dos livros. Repetição que faz soar seu nome (xxeeu – Xexéu, aqui representado na imagem), estar ou não gato (enquanto gato vivo) representa uma paralisia hamletiana do ser ou não ser na sua própria tumba (enquanto gato morto), o que pode fazer sua identidade girar entre Um e Zero, não sabendo associar severamente o Um ao estar e o Zero ao não estar, podendo isso variar (vingar o pai morto ou não). A lógica não faz acepção quanto a ser ou não ser, cada possibilidade tendo sua própria reflexão e seus próprios efeitos, inclusive em espaço-tempo diferentes. Ou então um gato grudado à fímbria do cogito à beira de uma lareira, enquanto seu dono meditava dia e noite, procurando insistentemente seu ergo, para com ele se fazer existência (no momento do gato vivo), sabendo ainda que a fórmula pode ser derivada, como em Lacan, da existência ao pensamento, o logo ainda funcionando na garantia do ser. O gato pode passear à lua cheia como verme rastejante (fora do gás) ou como íncubo à procura de um súcubo (dentro do gás, ou então como morto-vivo). Letra morta que fez e faz seus efeitos nos restos deixados pelo caminho, sanguessuga ou suga sangue, vertido pelas garras-gato ou pelo canino (não do cão, mas também cão, pois filho quase vivo e quase morto daquele Cão maior), sangue que salva o quase-morto (vampiro), mas que também transforma em quase-morto o que ainda poderia estar vivo (vítima hipnotizada ou seduzida). Gato intelectual, lacaniano, descansando seu crânio sobre um escrito que já foi fala, agora inscrito e zerado, dormindo no sossego de quem pode estar entre a vida e morte (gás do sono). Sem osmose possível, nesse caso, já que letra morta precisa ser devorada como cadáver e somente humano sabe disso fazer; bom, nem todo humano, mas gato com certeza não, pois seu crâneo foi até certo ponto da evolução. Gato esfinge que porta a resposta a sua própria pergunta sobre seu futuro entre matar e ser morto (vida escandida que se liga à morte, mas não espera por estar para se fazer potência destruidora). Nesse caso, matar e morrer carregam o mesmo sentido, destino traçado e impossível de ser refeito. Uma única vida, e não sete, vive esse gato que perscruta nas palavras do outro o caminho a ser percorrido e jamais desviado. Caminho, fazendo a exceção, que pode levar a dois destinos grudados, o da vida e o da morte.

domingo, 16 de abril de 2023

Angústia




No seminário sobre a Angústia (Seminário 10, p. 19), Lacan fala de um sentimento de se estar impedido como sintoma da angústia, trava do movimento, tratando da etmologia de impedimento, apontando o latim impedicare, que significa ser apanhado em uma armadilha, estar armadilhado numa captura narcísica. Impedido como capturado, paralisado. Na angústia estamos armadilhados, como presas do nosso inconsciente, fadados a repetir o furo que nos divide enquanto sujeitos, a fazer sintoma. Sintoma que necessita ser falado pelo paciente e escutado pelo terapeuta, angústia que precisa ser sentida e desimpedida, desarmando a situação de nosso armadilhamento e aliviando o sofrimento.

Por que a angústia nos paralisa? Na verdade, trata-se de um impedimento que, em seu sem-sentido, no Real de sua impossibilidade de compreensão, acaba gerando mais angústia.

Angústia como proximidade do a, como aquilo que poderia gerar satisfação mas também poderia ser devoração... Ela não é causada por um objeto específico, mas pela falta de objeto que possa responder ao desejo do sujeito, sendo consequência direta de sua incompletude, do empuxe para se desejar sempre mais.

A angústia é um sinal de que o sujeito está se confrontando com o Real, com o que não pode ser inscrito, com um objeto impossível de ser simbolizado. Enfrentando a angústia o sujeito poderia encontrar um sentido (ou duplo sentido) no sem sentido do encontro com esse irreconciliável de seu desejo, com essa esquina entre um certo limite do existir e o desejo eternamente insatisfeito.


sábado, 15 de abril de 2023

Formação do Sujeito

Desenho meu


No seminário 10 sobre a angústia Lacan teoriza sobre a relação dialética do sujeito com o Outro, que deixará como resto o objeto causa de desejo.

O a aparece, dessa forma, como resto dessa operação da constituição do sujeito como barrado no Outro, através de cinco etapas ou operações, que coincidem com os cinco objetos pulsionais: oral, anal, fálico, escópico e invocante, os três primeiros apontados por Freud e os dois últimos por Lacan.

Nessas etapas ocorre a subjetivação na relação com o Outro, onde o sujeito é solicitado a se manifestar como sujeito de pleno direito, demandante e demandado. Pode-se dizer, então, que o sujeito é representado por a em A, como dividido nessa operação simbólica.

 

O que Carolina não viu?

 
Carolina

(composição: Chico Buarque de Holanda)

Será que poderíamos classificar essa personagem da música do Chico como depressiva? Carolina só consegue enxergar o mundo por uma janela (talvez seus olhos), mas o que vê parece não lhe agradar. Não quer dançar, parece guardar muita dor, chorar em profusão. Alimenta rancor por um relacionamento rompido, pela perda de um grande amor, luto pela pessoa que não está mais presente?

Não adianta dizer a Carolina que a vida continua, que ela precisa deixar o passado para trás, que um novo amor talvez a espere, pois ela não tem condições de enxergar tudo isso na situação melancólica em que se encontra.

Talvez deixar Carolina viver seu luto e, se essa situação começar a apontar para uma depressão, ajudá-la a chegar a um profissional que escute sua história, que valorize seu sofrimento e que lhe dê tempo para novamente enxergar graça na vida. Ou talvez escutar seus fantasmas, enquadrados por sua janela-olhos e chegar ao fundo de seu desejo de menina.

Carolina

Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar
Seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar

Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
Mas Carolina não viu

Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar
Agora não sei como explicar

Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
E só Carolina não viu

Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
E só Carolina não viu

sexta-feira, 14 de abril de 2023

CONTO: Kant-emos com Sade

                                                 


Oh, Justine, vamos fazer fuque-fuque de uma forma diferente, mais apimentada, com mais ardor. Você leva seu mamilo e eu meu alicate; eu levo meu bum-bum e você o seu chicote. Vamos ter um gozo puro, sem sublimação. Vamos nessa onda sado-masô...vamos gozar na dor!

Oh, Justine, que as pessoas devem ser livres para viver seu gozo, sem barreiras morais, religiosas, policiais. Que todos devem aprender a buscar prazer no corpo, em qualquer partícula do corpo, em qualquer ponto de tensão e de tesão.

Vamos tomar chá de gengibre com torrada damasco-geleiada e depois fuder gostoso até fluir sangue por todos os poros de nossos corpos. Comer e ser comido... coisa mais boa não há!

Deixe eu gozar do seu corpo, minha cara, torná-lo meu. Deixa eu te subjugar até não restar mais nada de ti, a não ser como objeto de meu prazer mais puro. Permita que eu te faça de-ser ao mais baixo de si mesma, te prostituir e marcar como minha, única minha.

Vamos viajar em nossas fantasias e depois tomá-las na realidade, subverter a lei e a moral, pois a moral pode ser tornada em deleite fantasioso: fingir ser papa e foder as papisas; fingir ser rainha e foder com os súditos. Fingir ser alguém diferente e até poder fingir ser você mesmo, sem laços, sem amarras, sem pudores.

Oh, Justine: kant-emos com Sade o mais alto do nosso prazer. Goza!

XIBOLÊ COMO SENHA PARA O LAÇO SOCIAL

 


Freud, na conferência 29, de 1931, escreve sobre a teoria dos sonhos: “O caráter exótico das asserções que ela foi obrigada a apresentar, fê-la desempenhar o papel de senha, cujo uso decidiu quem poderia tornar-se seguidor da psicanálise e a quem ela permaneceria para sempre incompreensível”. Ele usa em alemão um termo hebraico para indicar essa senha, que é 'shibboleth' que em português pode ser traduzido como xibolete ou xibolê, e que em hebraico significa espiga de trigo. Por que Freud usa esse termo como senha, como foi traduzida na edição em português de suas obras? Talvez porque venha da história bíblica narrada abaixo.

O livro de Juízes (12:5,6) relata que nos dias de Jefté, os gileaditas fecharam a passagem do rio Jordão que dava acesso à terra de Efraim, impedindo que os efraimitas retornassem a suas terras depois de serem derrotados na guerra entre as duas tribos. Disfarçados entre o povo, os efraimitas eram submetidos a um teste quando desejavam cruzar o rio: os gileaditas perguntavam: “és tu efraimita?” Caso a resposta fosse “não”, tinha de pronunciar a palavra “xibolete”; como essa pronúncia não lhes era habitual, só conseguiam responder “sibolete”. Reconhecido o sotaque de Efraim, a pessoa era morta. Por isso, morreram quarenta e dois mil de Efraim naquela ocasião.

A pronúncia do termo hebraico servia como uma senha de passagem ou de retenção, de vida ou morte. Remete ainda a um não saber da língua que barra o desejo de voltar a suas origens e aos braços de seus compatriotas. Desejar fugir de uma terra onde se é odiado e poder voltar a uma em que se é amado passa pela língua, e deveria passar pela língua materna, que, no casos dos efraimitas, poderia significar a morte ou a salvação.

Freud parece usar esse termo como divisor entre aqueles que reconhecem a psicanálise e podem até se tornar psicanalistas e aqueles que, por resistência ou ignorância, se distanciam dela. Isso pode estar relacionado à linguagem usada no meio psicanalítico, termos novos criados ou antigos reformados pela teoria. Linguagem que cria laço social entre psicanalistas, demonstrando que estão inteiros na língua quando fazem uso da teoria e da prática analítica, mas também podendo isolá-los do laço social com outros saberes, criando e mantendo resistência à psicanálise.

A linguagem cria identidade no grupo, marca simbolicamente uma comunidade. Para entrar numa comunidade precisa-se de um xibolê como inscrição, falar a mesma língua e aceitar as mesmas ideias. Implica-se e essa implicação depende de um contexto específico compartilhado pelos participantes da comunidade. O “x” (de xibolê?) que se subentende no discurso dessa comunidade mostra que a compreensão do seu discurso depende muito mais da prática discursiva do que compreensões intelectuais arrojadas. O “sotaque” do grupo acelera essa compreensão e cria segurança.

Esse “X” pode se tornar mais complicado dentro da própria comunidade (luta por poder interno, por exemplo) e aparecer como jogo: um interlocutor, ao se dirigir a outro proferindo X, simula sinceridade e finge respeito às regras do princípio de cooperação para ocultar sua verdadeira intenção de levar o outro a acreditar que X significa X mesmo, quando na verdade significa Y. (lembrando o chiste citado por Freud no texto Os chistes e sua relação com o inconsciente, de 1905, em que dois judeus tem o seguinte diálogo na estação de trem: para onde vais?, pergunta um. Vou para Lemberg, responde o outro. Ao que o primeiro retruca: por que me dizes que vais para Lemberg para que eu pense que vais para Cracóvia, quando de fato sei que vais a Lemberg?). Isso pode ser barrado em comunidades em que teores morais são arraigados, como os religiosos, por exemplo, que rezam como Jesus, no Sermão do Monte, aconselhou: “Seja, porém, a tua palavra: sim, sim; não, não. O que passar disso vem do maligno” (Mt. 5:37). Malignidade dos xibolês, senhas para o engano e o pecado, portanto, para a morte.

Politicamente, os xibolês dentro da comunidade podem servir muito mais para exclusão. Um coxinha jamais aceitaria um petralha em seu grupo, e um petralha teria dificuldades de diálogo com um coxinha. O reconhecimento de um ou outro passa por termos discursivos bem diferenciados, como comunista e fascista.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

"Navegar é preciso, viver não é preciso"

 



No século I a.c., o general romano Pompeu, encorajava marinheiros receosos de enfrentar o mar a seguir navegando, inaugurando a frase “Navigare necesse, vivere non est necesse.”

No século XIV, o poeta italiano Petrarca transformava a expressão para “Navegar é preciso, viver não é preciso.”

“Quero para mim o espírito dessa frase”, escreveu depois Fernando Pessoa, confinando o seu sentido de vida à criação e tornando-a memorável. Caetano Veloso depois a cantou, numa melodia inebriante como as ondas dos mares.

Navegar tem precisão se se segue os instrumentos de navegação, navegar com técnica.

A vida, no entanto, parece ser imprecisa, deixa-se viver, deixando a vida nos levar. Não existe cartilha para se viver, mas é possível também encontrar instrumentos para tornar a vida mais precisa.

Viver simplesmente não rende, é preciso viver navegando, conhecendo os mares, as tempestades, sobreviver e crescer.

Navegar é experimentar, explorar, se arriscar, enfrentar os mares da nossa história pessoal.

Navegar, então, tem a ver com resiliência. Encontrar a nave mais potente e segura, a tripulação mais experiente, tentar escolher os mares mais calmos. Isso exige sabedoria. E o círculo se redobra, pois sabedoria se obtém experimentando, criando. Ou seja, não há outra forma de crescer senão em meio a algum sofrimento, sofrimento por existir e navegar.

Mas dependendo da intensidade das tempestades, nossa vida pode ficar pelo caminho e nossa navegação não nos leva a um destino certo.

Histórias intensas que vivemos podem sobrecarregar nossa capacidade de lidar com os traumas resultantes delas.

Uma solução possível é falar desses traumas, desses momentos intensos, falar a quem nos escute profissionalmente e aponte os caminhos e as pontes por onde possamos continuar a navegar de forma resiliente.

Um psicanalista consegue escutar o que de nossa história nos entrava e nos auxilia a nos destravar, a retomarmos o caminho da resiliência.

Tarefa a dois, a análise é um trabalho árduo, exigindo que um fale tudo o que é possível de ser falado, e que o outro escute o dito e o não dito, o dito no não-dito, as entrelinhas de um discurso que recoloquem nossa vida nos trilhos, melhor ainda, sobre as ondas dos mares.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Enlaces possíveis entre resiliência e psicanálise

 



A resiliência veio da física e a psicanálise veio da psicologia.

A resiliência trabalha com o trauma e a psicanálise começou com o trauma, ou pelo menos foi isso o que Freud inicialmente escutou das histéricas.

O trauma da resiliência geralmente se dá pela sobrecarga que vem de fora ou de dentro e que transborda a capacidade do indivíduo lidar com essa situação, levando ao adoecimento. O trauma da psicanálise também estava relacionado (teorização no Projeto para uma psicologia científica [Entwurf], de 1895, que Freud abandonou e que depois foi sendo diluída em outros textos, principalmente no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos) a uma sobrecarga tanto no neurônio phi (ligado ao exterior) quanto no neurônio psi (limitado ao interior do corpo), o que poderia desencadear sintomas físicos (conversões histéricas) e psíquicos (neuroses de angústia).

A resiliência foi encampada pela psicologia, principalmente por uma psicologia chamada positiva. A psicanálise saiu da psicologia e se distanciou cada vez mais dela. No entanto, certo manejar clínico da psicanálise foi apropriado pela psicologia, inclusive tornando-se "matéria" dos cursos de psicologia no Brasil.

Em que momento a resiliência pode ter cruzado com a psicanálise?

Não faz muitos anos que psicanalistas começaram a discursar sobre resiliência. Penso que isso começou fortemente na França e acabou caindo na América Latina, mas de maneira bem lenta. Inicialmente apenas como aportes teóricos, posteriormente surgiram interrogações da aplicação clínica do conceito na prática psicanalítica. Mas como diferenciar essa aplicação do tratamento realizado pela psicologia dos traumas vivenciados, principalmente do que se costumou chamar de estresse pós-traumático?

Possivelmente seja possível aportar a esse enlace entre resiliência e psicanálise alguns conceitos desta como sublimação, defesa, pulsão de morte, mas não se pode simplesmente jogar com eles, relacionando-os ingenuamente com o conceito de trauma e recuperação da teoria da resiliência, por exemplo.

- Pensando no que Freud escreveu desde seus textos pré-psicanalíticos sobre a relação entre o físico e o psíquico, que pode ser de contiguidade, mas também de oposição, de troca de cargas entre si, equilibrando esses dois lugares, ou de um sobrecarregando o outro, causando sintomas físicos e psíquicos;

- Pensando que primeiramente Freud idealizou o trauma como sexual, e reconhecendo depois que ele ocorre no nível da fantasia, mas, mesmo sendo fantasiado, tendo poder de criar imagens com a mesma potência da imagens reais;

- Pensando, assim, que o trauma pode vir tanto do exterior, com a impossibilidade de se lidar com questões sociais, culturais, econômicas e outras, quanto do interior, com o transbordamento de pensamentos e desejos que tornam impossível ao sujeito lidar com essas ideias, de poder verbalizá-las e simbolizá-las de forma a suportá-las e não adoecer,

Pode-se estabelecer a partir disso uma relação entre o conceito de resiliência para algumas abordagens teóricas como psicologia, sociologia, e a abordagem que a psicanálise realiza desse conceito. Algumas abordagens colocam mais ênfase nos fatores que vem do exterior e outra com mais ênfase nos fatores internos.

A psicanálise trabalha mais a questão inconsciente em relação a situações traumáticas, em que seria possível entender o trauma como uma escolha fantasiosa (imagens mentais com impacto de realidade) sobre desejos e representações que se fizeram peso inscritível, não simbolizáveis, com todas as consequências psíquicas e físicas de não se encontrar sentido para coisas que estão para além da compreensão. Essa posição do sujeito de emudecimento (das palavras e dos desejos) se assemelha a uma situação de morte, como uma invasão na percepção de algo que se irrompe não se sabe de onde e que não encontra significação no mundo desse sujeito, deprimindo-o, mortificando-o, isolando-o do mundo.

Como então sair desse Real do trauma, do encontro com a Coisa e voltar a discursar sobre fatos acontecidos e sobrecarregados de afetos e de desejos e ideias que forçam sua irrupção na consciência do sujeito? Falando a respeito para alguém que possa escutar atentamente esse discurso e realizar pontuações, escanções e interpretações que possam ressignificar essas ideias, esses afetos, e possibilitem que o sujeito possa lidar de uma forma mais responsável (no sentido de se responsabilizar por essas situações) com essas suas coisas e consiga diminuir o sofrimento que elas provocam. O psicanalista, dentro dessa compreensão, consegue ter essa escuta, pois sua teoria e técnica permitem ao sujeito se reposicionar sobre as causas de seu sofrimento e poder mudar o foco sobre elas.

Mas seria isso tornar um sujeito resiliente?


SITUAÇÃO TRAUMÁTICA E RESILIÊNCIA

Para alguns estudiosos da resiliência, o trauma ocorre quando é superada a capacidade de se lidar emocional e cognitivamente com um fato ocorrido, levando a pessoa a uma sensação de impotência e a transtornos físicos e psíquicos

TEORIA

PSICOLOGIA

PSICANÁLISE

Origem do trauma

Situações que afetam a pessoa em algum momento da vida, como perda de alguém querido, doenças, perda financeira, acidentes, etc, levando a pessoa a ter transtorno pós traumático, sintoma que está ligado diretamente à situação ocorrida. Essa situação não é esquecida, está disponível à consciência e isso tem peso no sintoma.

O trauma é causado por uma cena, geralmente sexual, vivida pela pessoa na infância e dentro de sua família ou muito próxima dela (relação com o complexo de édipo). O efeito do trauma são as neuroses (sintoma) e suas causas são inconscientes. Os sintomas que são efeitos dessa cena traumática aparecem na fase adulta, ou seja, a posteriori, e são eles que estão disponíveis à consciência

Tratamento

Paciente fala da cena traumática, que é o fato acontecido, para obter compreensão (cognitivo) sobre ele e buscar sua superação

Paciente fala de tudo que esteja relacionado ao sintoma (recordar e elaborar), com o objetivo de encontrar um enlace entre ele e a cena traumática inconsciente que é sua causadora, encontrando um sentido para o que lhe acomete.

Resiliência

Quando a pessoa supera o trauma e volta a estar como estava antes dele, ou até melhor do que se encontrava, diz-se que ela adquiriu resiliência, diretamente ligada a essa superação. É uma forma de aprendizagem para lidar com futuras situações traumáticas

A psicanálise ainda reflete pouco sobre a questão da resiliência. Talvez o sentido adquirido ao desrecalque da cena traumática permita à pessoa lidar melhor com os sintomas que forem aparecendo ao longo de sua vida, mas nada garante que esses sintomas não façam parte de sua existência e que ela mude apenas a maneira de lidar com eles.


domingo, 9 de abril de 2023

Sujeito suposto saber

 


Se há lugar para um saber, ele está situado em relação a uma falta. Se a falta cria o desejo, o saber pode estar em relação a esse desejo. Desejo de saber... o que? Saber qual conteúdo da história do sujeito sustenta essa falta, adquirindo estatuto de verdade. Verdade saber do sujeito. Saber que se torna verdade quando emana do inconsciente.

Mas como chegar a essa verdade? Ela é totalmente inconsciente ou pode se tornar consciente? No dispositivo analítico o discurso do sujeito permite acesso a ela ou sofre por acessá-la. Recalcado e retorno do recalcado seriam a mesma coisa, verdade que se esconde e se revela de forma velada. Sempre inacessível, portanto? Se o saber está do lado do sujeito, por que ele não consegue acessá-lo fora do dispositivo analítico? Somente provocado pela escuta do analista?

Por que o recalque se revela nesse saber não sabido? Unicamente pela presença do analista o desejo de saber se faz presente, deslocado, mas com função de trabalho: fazer valer o inconsciente e a verdade que o faz espocar.

Saber de desejo sustentado pelo desejo do analista. Dessubjetivação (retificação subjetiva) como assunção de algum saber, ou pelo menos desejo de chegar até ele, de se tornar responsável pela falta. Sujeito dividido entre seu furo e seu saber, num equilíbrio pouco provável, entre um sintoma significante e uma significação a toda prova.

Saber inconsciente que não supõe um sujeito, mas que está encarnado nele, sujeito do inconsciente, que se manifesta em um saber que pode ou não se tornar a verdade desse sujeito e transformá-lo.

Psicanálise em gotas

 


NÚMERO 3 – POR QUE FAZER ANÁLISE?

A vida é feita de acontecimentos, que muitas vezes transbordam a capacidade do ser humano de lidar com eles, levando a intenso sofrimento e podem até se tornar traumáticos. O sofrimento movimenta, negativa ou positivamente, o ser humano. Causa amadurecimento, mas também paralisa ou limita a vida. Leva à busca de ajuda, desejo de alívio imediato.

Algumas terapias podem eliminar o sintoma sem levar ao conhecimento da causa, o que pode fazer com que essa “cura” seja temporária e o sofrimento retorne. Não seria mais interessante uma técnica que focasse no porquê, que poderia aprofundar os motivos do adoecimento e levasse a uma cura efetiva?

A psicanálise tem a possibilidade de oferecer uma prática (a psicanálise é um novo discurso, fundado na prática de uma análise, disse Lacan) em que o sintoma adquire um sentido diferente do que na medicina e em outras psicoterapias e, com esse sentido novo, o discurso sobre ele muda. Mas o/a analista promete cura? Sim, que pode não ser necessariamente a eliminação do sintoma, mas cura como transformação em algo que faça mais sentido para a vida da pessoa.

Portanto, distinto de outras técnicas, o/a analista trabalha para o descortinar do saber inconsciente do sujeito, no desvelamento da história que levou à escolha de certos sintomas. Isso não é tranquilo, pois muitas vezes o sintoma é a única coisa que a pessoa tem, é sua forma de gozar, o que faz com que, mesmo querendo que ele desapareça, inconscientemente isso não é assim, não se deseja eliminar essa forma de satisfação.

Freud assinalou essa resistência do paciente em mudar, pois o sintoma tem seu ganho, enquanto Lacan usou o termo gozo para indicar esse tipo de satisfação, de prazer ou desprazer, que ocorre no inconsciente, perante situações que “escolhemos” e que depois são representadas por nossos sintomas.

Como funciona uma análise? A regra de ouro dessa técnica é a associação livre, em que o analisante é convidado a falar tudo que lhe vier ao pensamento, sem censura e, se possível, sem escolha prévia. É fácil? Para alguns sim, para outros nem tanto, mas o/a analista experiente sabe perguntar, pontuar e interpretar a fim de fazer com que o trabalho da análise continue.

Cura pela fala, eis o que a primeira paciente psicanalítica (que não foi de Freud e sim de seu amigo Breuer, bem antes daquele começar a atender mulheres histéricas) descortinou em Viena no quase final do século 19. Falar sobre tudo: males, bens, desejos inconfessos, sobre sexualidade (um horror para o médico daqueles anos!).

O que depois (com a prática e a teoria freudiana) se tornou a psicanálise era uma prática que proporcionava ao paciente poder responsabilizar-se pelo que o acometia; responsabilidade ética e não no sentido moral, ética do desejo, de poder apostar e poder ser feliz ou não naquilo que desejava.

Motor da psicanálise, a transferência (repetição, na diferença, de significantes vivenciados em épocas remotas da vida), estabelecida entre analista e paciente, permite a este supor naquele um saber sobre seu sintoma, o que o leva, de forma sugerida, a falar sobre o mal que o afeta e encontrar enlaces com sua história enquanto sujeito. Isso leva a uma mudança na postura em relação a si mesmo e com o mundo, o que pode significar uma cura, mesmo que o sintoma inicial não seja afetado.

Mas do que se deve falar numa análise? A regra de ouro é falar de tudo que vem ao pensamento, sem julgamento e censura. O analista vai pontuando, escandindo (fazendo o corte das sessões) e, mais raramente, interpretando. O analista vai perguntando sobre o que parece vago, indeciso, lapso. Pergunta não por curiosidade, mas para fazer o inconsciente falar e, nesse falar, vai surgindo o sujeito da análise.

Análise é para todo mundo? Provavelmente não, pois exige investimento de libido, tempo e dinheiro. Mas para quem quer e pode, é indispensável!

NÓS E NOSSO TONEL FURADO

 



Será que muito do sofrimento que experimentamos não viriam de fantasias morais que nos acossam por imaginarmos que fazemos coisas erradas e que precisaríamos ser punidos repetindo essas dores para expiar essa culpa? Seríamos como as danaides e estaríamos a encher nossa vida furada com uma água que não nos sacia? Tarefa impossível e sem sentido a roubar nosso tempo mental?

Vejam abaixo o resumo do mito...

Na mitologia grega, as Danaides eram as cinquenta filhas de Dânao, rei da Líbia. Dânao mandou suas filhas se casarem com os cinquenta filhos de seu irmão gêmeo, Egipto, mas ordenou que cada uma delas matasse seu marido na noite de núpcias.

De acordo com a lenda, as Danaides foram punidas no Hades por seu crime, tendo que encher eternamente um tonel furado como punição. O tonel das Danaides é frequentemente mencionado na literatura e na arte como um símbolo de tarefa impossível ou inútil. A imagem de um tonel furado que nunca se enche simboliza o desperdício constante de energia e a impossibilidade de completar uma tarefa sem sentido.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Freud e a psicanálise

 


Afirma-se frequentemente que Freud aprendeu com as histéricas, que a partir do tratamento delas criou o método psicanalítico. O que se pode perceber pelos textos chamados pré-analíticos (e que para alguns comentadores já seriam analíticos!) é que ele pastou com essas mulheres (e um ou dois homens) histéricas, primeiro tentando tratá-las como neurologista, algumas vezes pegando Charcot como modelo, somente com a hipnose. Depois começou a usar o método que Breuer usara com Anna O. (método catártico com uma única paciente?) em 1882, e que sabemos em que fim deu.

 Combinar hipnose com sugestão - o aclamado método catártico - resolvia para alguns casos de histeria, mas Freud se viu em maus bocados com outros casos em que os sintomas ou respondiam temporariamente ou não respondiam de jeito nenhum! Boa parte das histéricas não se deixava hipnotizar (por conhecerem a técnica, por não quererem ser hipnotizadas e porque Freud talvez fosse realmente um péssimo hipnotizador!) e outras não aceitavam as sugestões dadas por ele, seja no estado de sonambulismo ou fora dele.

 Foi somente a partir da famosa frase de Emmy von N. em 1888 (talvez não tenha sido somente uma Emmy, mas várias delas a dizerem frase semelhante!), solicitando que ele parasse de perguntar tanta coisa, qual o  motivo disso, qual o motivo daquilo, e a deixasse falar livremente, foi que ele percebeu que não necessitava mais da hipnose, bastando deixar a paciente deitada confortavelmente para auxiliá-la em sua concentração.

 Como resquício da hipnose, ainda usava uma técnica que aprendeu com Bernheim, que era pressionar a testa da paciente, sugestionando que ela iria encontrar a causa do seu sintoma e que deveria falar sem censura tudo que surgisse em seu pensamento. Tinha surgido a regra de ouro da futura psicanálise: a associação livre, mas que ainda demoraria algum tempo para ser teorizada. 

 Portanto, continuou usando de sugestão por alguns anos, pois ainda acreditava que dessa forma poderia dar conta dos sintomas, com o objetivo de extirpá-los. O que ficou evidente depois é que bastaria a paciente falar de sua vida como um todo, e não somente tentar lembrar das cenas traumáticas que seriam a causa de seus males, para ocorrer abreação com remissão dos sintomas.

 Incentivando a associação livre, pontuando a fala das pacientes, reconhecendo a existência de material que não estava acessível à consciência e da qual a paciente não se dava conta, estava o caminho preparado para a "descoberta" do inconsciente (como substantivo, pois como adjetivo ele já era reconhecido pela filosofia!) e um método totalmente psicológico que Freud somente alguns anos depois denominaria de psicanálise. No Entwurf (1895, em que inicialmente somente seu amigo Fliess teve acesso) a estrutura do inconsciente está praticamente formalizada, sendo trazida a público somente no capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos. Complexa, juntando biologia com psiquismo, dá conta do caminho percorrido pelas representações, tanto com seus representantes percorrendo livremente a via até a consciência, quanto as possibilidades de recalque, com a escolha de novos representantes, que podem aparecer em atos falhos, lapsos, sonhos e, em grande parte, em sintomas.

 O que Freud aponta nos Estudos sobre Histeria é que o tratamento para esse tipo de neurose tinha longa história, mas que até aquele momento (em que ele e Breuer começaram a tratá-las - ou em que ele começou!) nada se teorizava a respeito. Apesar de haverem livros publicados por Charcot, Bernheim, Janet e outros, ele não considerava isso teorização, pelo menos como ele estava fazendo naquele momento. E com certeza o grande diferencial de Freud foi perceber e acreditar na etiologia sexual das neuroses e apontar questões de linguagem presentes (deixar a histérica falar e pontuar falhas nessa fala), o que provavelmente o levou a melhores resultados com relação aos sintomas presentes nelas. Com a teorização sobre o inconsciente, recalque, transferência, sublimação e outros conceitos, a teoria psicanalítica fazia todo sentido.

 Depois veio a interpretação dos sonhos, que já caminhava durante os Estudos, pois Freud anotava seus sonhos e tentava encontrar sentido para eles. Nesse texto ele vai trabalhar basicamente a estrutura do recalque, do caminho das representações. 

 Nos textos teóricos posteriores (Psicopatologia da vida cotidiana e Os chistes e sua relação com o inconsciente) ele vai aprofundar a relação da linguagem com os sintomas e o inconsciente.

 Nos textos de prática, como "caso Dora", ele aprofunda a questão da transferência e associação livre, assim como a ligação do afeto com as representações.

 


ENTRADA EM ANÁLISE

 



 Reflexões a partir de minha análise pessoal

 Onde procurar um analista: na internet, por indicação, listas de convênios, em escolas de psicanálise? Ele certamente não se encontra em qualquer lugar, mas exatamente lá onde deveria estar, no meio de outros analistas lacanianos, fazendo laço. Ou pelo menos deveria...

 A busca por um analista lacaniano já é por si mesmo uma mexida em tudo que se refere ao sujeito do desejo, sendo uma transferência de saber com anterioridade a qualquer possibilidade de encontro, em que se faz a entrada em cena do sujeito suposto saber - SsS (que é prévia e faz parte da demanda), com a inscrição do significante do analista (significante qualquer) que o sujeito captura mesmo antes de tê-lo visto. Momento de reconhecer que colocamos na análise o desconhecimento sobre nosso desejo e a busca da solução desse seu enigma, justificando que o analista teria essa resposta.

 A suposição de suposto saber pode facilitar a associação livre, juntamente com a transferência, permitindo um descolamento sintomático a partir do sintoma analítico, substituindo uma neurose (geradora da demanda) por outra (a de transferência), fazendo o inconsciente trabalhar.

 Como levar a ele a demanda de análise: com sintoma ou sem sintoma, análise didática, desejo de se conhecer melhor, terminar uma análise anterior? Seja qual for, a queixa inicial se torna demanda endereçada ao analista, demanda de saber sobre nosso sintoma. Isso aponta a um excesso de gozo que leva ao sofrimento do analisante e o move à procura de ajuda; ou seja, um dos pontos a serem trabalhados será esse ganho secundário no gozo que o sintoma denuncia e que torna tão difícil se livrar dele.

 E como aguentar o suposto silêncio de um lacaniano? Porque nas entrevistas preliminares não seja interessante o analista fazer escansões e interpretações, ele fica mais nas perguntas, que funcionam também como pontuações, caminhando pela diacronia (história) do analisante. Nesse sentido, aqui o analista ainda pode falar mais. Feita a entrada em análise, o silêncio do analista será mais sentido.

 Como não ficar com raiva das sessões sem tempo delimitado? Nas entrevistas preliminares muito provavelmente as sessões serão mais longas a fim do psicanalista colher informações do analisante, mas quando da entrada em análise os cortes podem ser feitos em tempo móvel e curtos, com sessões menos extensas. No entanto, isso não é realizado por todos os analistas, pois alguns preferem manter as sessões longas.

 Como esperar com tranquilidade o devido momento de ir para o divã, que pode levar algumas sessões ou até meses? Geralmente são poucos analisantes que têm noção dessa passagem, mas muitos deles a esperam e até questionam o analista por que isso ainda não ocorreu e qual o momento exato. O analista até pode fazer essa passagem apontando ao analisante o mótivo: que é nesse momento que o sintoma passa de resposta (causa de sofrimento do sujeito) ao estatuto de questão (retificação subjetiva: implicação do sujeito em seu mal – de “sinto mal” a “sim tô mal”, segundo Quinet). O sujeito entra em análise quando ele para de se queixar de seu sintoma e se pergunta pelo seu significado! É por isso que para alguns pode ser bem demorado, por não conseguir escapar desse hábito de estar sempre culpando o outro pelo que lhe acontece.

 É quase incompreensível a passagem das entrevistas preliminares à análise propriamente dita no sentido prático. De repente se diz algo que aponta ao analista que aquele é o momento. Mas que sentido teria isso ao analisante além da passagem ao divã (nem sempre obrigatória)? Será que muda a forma como o analista fala ou o conteúdo de suas intervenções? Será que teremos que falar de forma diferente, com outro tom de voz? Será que podemos ficar com os olhos fechados para se sentir ainda mais distante daquele lugar, mas ainda dentro do dispositivo? A entrada não deixa de ser um processo de histericização, em que o sintoma aparece como enigma, com o sujeito falando no lugar de dividido (na pergunta pelo seu ser), colocando o inconsciente em exercício e ao mesmo tempo sentindo estranhamento em nossa própria fala.

 Sentimento de sair de si mesmo enquanto se fala no divã. Sentido de irrealidade durante a sessão, entre 4 paredes, o analista com  voz que vem do além.  Discurso nosso meio esquizofrênico.  Isso pode assustar alguns. Não é qualquer um que consegue intensificar seu delírio (aumentar o volume do pensamento) sem se sentir meio fora de si, como pressentimento de sair do racional. Estar no divã não deixa de ser uma experiência interessante: falar como se falasse para as paredes, ouvir a voz do analista vindo de longe. Depois de sua palavra do fim da sessão, levantar do divã como se levantasse da cama, com outro tipo de tensão no corpo.

 Com o crescimento das sessões de análise via tecnologia da informação e da comunicação a questão da ida para o divã se complexificou e é necessária muita reflexão sobre essa passagem das entrevistas preliminares para a análise para sua exata compreensão que, em todo caso, não deixa de ser possível via on line em função de sua simbologia.

 Como falar tudo o que vem ao pensamento, sem censurar, sem achar que isso ofenderá a moral do analista? Impossível permitir-se à total cadeia das ideias, pois muitas delas parecem não só ferir o eu do analisante, mas também ferir o analista em sua pessoa. Aquilo que é dito pode desgostar o analista e atrair sua fúria e isso muitas vezes passa pelo pensamento do analisante. Outras vezes o que se pensa parece não ter importância e não fazer parte do tema da vez. Nesse sentido, pode-se ficar semanas ou meses remoendo um tema na sua mente até que se crie coragem suficiente para expô-lo e sentir como isso andará. Apesar de tudo isso, temos que nos pôr a trabalhar e seguir a regra de ouro da associação livre.

 O que seria ficar preso no mesmo tema? Seria uma repetição com alguns detalhes a mais ou colocar a mesma questão de forma diferente? Será que repetimos o mesmo tema para ver se ocorre alguma mudança mágica na nossa forma de pensar, sentir e agir? A análise teria esse poder de transformação? E quando se passam semanas, meses, anos e nada muda? Culpa de quem? Do analista, que não sabe e não ajuda em nada, ou do analisante que não investe o suficiente, que falta às sessões, que não segue a regra de associar sem parar?

 Como se comportar na sessão, de que forma falar? O que seria melhor: deixar-se levar pelas ondas de pensamento, falar de tudo, de forma quase delirante, emocionalmente, sem nem pensar onde isso vai dar, ou falar devagar, calculadamente, racionalmente, como se cada palavra importasse e ir esperando pontuações do analista sobre o que se fala? É possível compreender tudo que se fala? Seria uma ilusão tentar se conhecer melhor através da análise?

 Todo analisante teria algum sintoma no divã? Suadeira, tremedeira, gagueira, bexiga cheia? Ansiedade e depressão poderiam ser intensificadas no momento em que se está ali deitado? Ocorre uma tensão da contorsão do corpo tocado pelas palavras, que fazem mescla com o afeto que elas carregam, intensificando uma somática já carregada fora do dispositivo; ou seja, de alguma forma saímos mexidos daquela sessão, seja pelo tema tratado, pelo esforço que realizamos ou tocados pelas escansões e pelo corte realizado pelo analista.

 Quanto tempo dura a sessão? Às vezes uma eternidade quando não se quer ou não se consegue falar, em função do tema difícil; às vezes o tempo voa quando se fala disparadamente, tentando dar conta de narrar ou compreender uma situação que veio como disrupção no cotidiano. Tempo não é somente lógico para o analista, mas também relativo/subjetivo para o analisante.

 Haveria diferença entre falar a verdade e mentir na análise? Se os lapsos, chistes, sintomas e esquecimentos ocorrem em qualquer discurso, seja verdadeiro ou não, não importa se o analisante mente ou diz a verdade; o que importa é que siga a regra de ouro e o analista o escute com atenção flutuante.

 Como é o corte em análise e como sentir e trabalhar seu impacto? Que palavra mágica ou frase mal-dita (maldita?) virá nos balançar e nos tirar do lugar de nada? O que poderá nos remeter para a sessão seguinte ou nos fazer ignorar o tema do corte? Como parar de falar naquele exato momento em que se é cortado e se queria continuar falando? Se o corte é o encontro com o real, como senti-lo? Seria o algo mais a dizer que não foi possível dizer e que você precisar engolir, sabendo que ele não teria mais efeito na próxima sessão; ou seja, está para sempre perdido.

Fim da sessão: confirmar horário seguinte, deixar o dinheiro em cima da escrivaninha do analista, apertar sua mão e partir, ainda pensando no que fora dito ali. Não é fácil, para alguns, parar o discurso no momento em que o analista faz o corte e fingir que o dispositivo se desfaz magicamente e que a pessoa que está à sua frente não encarna mais o papel de analista. Alguns continuam narrando fora do divã até a porta do consultório, não distinguindo o analista semblante do analista pessoa. 

E quando se fica esperando uma sessão curta e ela não chega? Seria sinal de que o analista não está encontrando motivo para o corte e que o material que se está oferecendo não é interessante ou válido?

O que é esse encontro entre analisantes na sala de espera? Qual a cumplicidade que poderia existir entre eles? Sinal de que os horários anterior ou posterior estão ocupados, o que pode indicar o status do analista (estar com agenda cheia).

Realmente se sonha (ou não se sonha - de não lembrar dos sonhos) para o analista! E também se lembrar mais dos sonhos que se tem, como se cada um deles existisse para ser ofertado no altar do dispositivo analítico.

 Pode-se preparar o material para a análise? Preparar antecipadamente o material (temas, sonhos, situações) para serem narrados? Isso seria burlar a associação livre?

 O processo analítico mexe com a gente, a ponto de causar certa melancolia. Lembrar de coisas esquecidas deve mesmo causar isso.

 Como perceber as interpretações que são feitas? É possível senti-las? Sentir seus efeitos? E quando se passam meses sem nenhuma interpretação do analista, o que isso poderia significar? Que a interpretação é realmente coisa rara?

 Mesmo entendendo que o trabalho analítico é do paciente, ele não deixa de esperar e cobrar do analista uma ação, mesmo que seja somente um direcionamento com perguntas para que o analisante continue falando. Quando este percebe que o analista foge disso (silêncio demais, presença física demais, transferência demais), pode se irritar e até mesmo interromper o processo. Culpa-se o analista por não dar respostas; transferência de um pai que não respondia e não ensinou um menino a ser homem

 Como construir o fantasma em análise? Construção conjunta, somente do analista, somente do analisante? Como ter certeza de que se encontrou o fantasma fundamental? Como fazer sua travessia? Sua travessia quer dizer o quê? Desvanescimento da situação ou outra compreensão sobre ela? O analista indica o fim da análise? O analisante é quem percebe esse fim e pede para encerrar?

PSICANÁLISE EM GOTAS

 


NÚMERO 2

Aparentemente, boa parte dos analistas não teorizam sobre o uso do divã,  talvez por desinteresse, talvez por desconhecimento.  Nesse sentido, poucas justificativas são apontadas sobre por que, como e quando catapultar o analisante da poltrona para o divã.  No caso de lacanianos, muitos não percebem que geralmente as entrevistas preliminares se dão na poltrona e a análise propriamente dita no divã; seria essa a passagem. Com relação a quando, já ouvi analistas argumentarem sobre o tempo para isso (de um dia a meses!), mas sem conseguir justificar o motivo. O porquê com certeza é ainda bem mais complexo.

Para esse pequeno texto pesquisei a obra completa de Lacan e Freud e cerca de 50 livros de comentadores sobre psicanálise para conseguir encontrar pouco material a respeito. Mesmo em Freud e Lacan as justificativas são poucas. Resolvi não pesquisar textos específicos sobre a função do divã para não me contaminar. No entanto, vale a pena citar um que valoriza bastante o tema, que é o 4 + 1 condições da análise,  do Quinet.

 Freud começou a deitar suas pacientes histéricas como forma de substituir o sonambulismo provocado pela hipnose (já quem nem todas eram hipnotizáveis e porque ele também se considerava um péssimo hipnotizador); nessa posição elas poderiam ficar num estado de concentração que lhes facilitavam falar tudo que vinha ao seu pensamento, o que depois passou a ser denominado como associação livre (ver Estudos sobre Histeria, de 1895).

Esse método continuou sendo usado depois que ele fundou a psicanálise, com outra justificativa somada de que ele não conseguia sentir-se olhado dez horas por dia por seus pacientes, ou seja, uma questão pessoal dele.

Muitos analistas consideram que eles ouvem melhor o paciente no divã do que os que se sentam em sua frente, não por estarem fisicamente perto, mas sim porque o analista não se distrai com os olhares e expressões faciais de seus pacientes (afirmação de Fink, que também alerta sobre o risco de se deitar pacientes psicóticos).

quinta-feira, 6 de abril de 2023

PSICANÁLISE EM GOTAS

 



NÚMERO 1

Emmy Von N (ou Fanny von Sulzer Wart, Suíça, 1848-1925) chegou até Freud em 1889 (então com 41 anos) e era viúva de um industrial de quem herdou fortuna, tendo tido com ele duas filhas. Foi instalada em um sanatório, por solicitação de Freud, que a visitou duas vezes por dia, por 3 semanas, nessa primeira fase do tratamento.

Ela se queixava de dores em várias partes do corpo, medo de animais e de pessoas desconhecidas, além de lembranças de sua infância que considerava traumáticas e que provavelmente alimentavam esses seus sintomas. Apresentava também delírios e alucinações, que Freud considerou como psicose aguda.

Freud diz no relato que foi a primeira vez que usava o método catártico criado por Breuer e que era inexperiente no uso desse tipo de tratamento. Ele tinha profundo conhecimento sobre histeria pelo tempo que tinha passado em Paris na Clínica Salpetriere em Paris, em 1885, e por ter traduzido para o alemão obras de Charcot e Bernhein. Também foi o primeiro a realizar uma teorização sobre o processo histérico, contida nos cinco historiais dos Estudos.

Mesmo assim, relata dificuldades nesse tratamento, pois as sugestões que realizava durante a hipnose de Emmy nem sempre funcionavam ou duravam. Ele parecia valorizar pouco os motivos dos sintomas, não realizando nenhuma pontuação sobre eles, mesmo que enxergasse ali causa e efeito. A rememoração facilitada pela hipnose parecia servir somente para ser borrada pela sugestão, para que aquela lembrança não mais sustentasse o sintoma (psíquico ou físico) apresentado pela paciente.

Freud foi otimista em dizer que houve uma melhora bastante grande de Emmy nessas 3 primeiras semanas, mas alguns meses depois a paciente retornou para uma segunda temporada, pois uma situação por ela vivida como traumática fez praticamente todos os seus sintomas retornarem. Ou seja, ela se sentia bem até que acontecesse algo que ultrapassava sua capacidade de lidar com a situação e fizesse com que seus sintomas tivessem a mesma intensidade. 

Foi essa paciente que disse a famosa frase a Freud, solicitando-lhe que não lhe fizesse tantas perguntas, que a deixasse falar livremente, o que viria a fundar o método da associação livre.




Seriam os textos psicanalíticos difíceis de serem lidos?

                                            

Seriam os textos psicanalíticos difíceis de serem lidos?

Seria a leitura de textos de psicanálise mais complicados de ler do que outros textos, como os de filosofia, por exemplo? Seriam os textos de Lacan mais difíceis de serem compreendidos que os de Freud? Ou não teriam sido escritos para serem compreendidos mesmo?

Como Ler esses textos?

Morte em Veneza – uma visão psicanalítica

 



 MORTE EM VENEZA – Thomas Mann



TÍTULO ORIGINAL

Der Tod in Venedig (escrito em 1911 e publicado em 1912), Editora Abril, 1971


PERSONAGENS

Gustav Aschenbach (alemão, com cinquenta e poucos anos) e Tadzio – apelido diminutivo de Thadeus (polonês, com 14 anos)


AUTOR

O livro é apontado como contendo aspectos biográficos de Mann. Assim como ele, o personagem Aschenbach vem de família burguesa, tinha nascido de um casamento de consciência oficiosa e sóbria (pai) com impulsos acentuados e ardentes (mãe), que geraram um artista. O pai de Mann era assim de certa forma e a mãe dele possuía essa índole por ter nascido no Brasil, país tropical (“do Sul”). Mann tinha natureza orientada para a fama, maduro e hábil desde cedo. Assim como o personagem, já era famoso mundialmente aos quarenta anos, teve uma juventude fechada, somente trabalhando.

Outro aspecto biográfico que aparece no livro é a atração sexual por pessoas do mesmo sexo, que Mann parece nunca ter assumido. Isso aparece em Aschenbach como uma atração artística e sensual, não sendo conotada como sexual. Ir contra tudo e contra todos seria a ação do poeta, segundo Aschenbach, mas que aparentemente não foi o que Mann fez, ao se casar com mulher e ter filhos, indo contra uma tendência homossexual.
Outra informação biográfica que Mann coloca em Aschenbach é o fato de ambos terem nascido num domingo.


Mãe: Júlia da Silva ruhns (nascimento: Paraty, RJ, 14/08/1851 — Morte: Weßling, Baviera, 11/03/1923). Seus filhos escritores criaram personagens inspiradas nela em diversos livros, referindo-se afetuosamente ao seu sangue latino (os alemães costumam dizer simplesmente "do sul"). Em Morte em Veneza, surgiu na figura da mãe do principal protagonista, Gustav von Aschenbach.

Pai: Thomas Johann Heinrich Mann (Lübeck, Alemanha 22/08/1840 - 13/10/1891)

Durante a Primeira Grande Guerra, Thomas Mann entra em atrito com o irmão Heinrich Mann por opiniões a favor e contra o conflito mundial. Thomas acolheu com agrado a entrada da Alemanha na guerra. Tomava-se por patriota. Defendeu a política do Kaiser Guilherme II (em Morte e Veneza ele é quem condecora Aschenbach), em oposição direta a Heinrich Mann, postado ao lado da França e da "Zivilisation" (termo de Thomas). Thomas chegou a penhorar a casa que possuía em Bad Tölz em 1917 a favor do esforço de guerra. A mãe escreveu aos irmãos tentando amenizar o conflito. A perspectiva de Thomas ao longo deste período encontra-se sumariada no ensaio «Considerações de um Apolítico» (1918) e no romance A Montanha Mágica, escrito entre 1912 e 1924.

Em 1911, concebeu a novela Morte em Veneza, durante uma estada no Lido de Veneza (mesmo hotel em que os personagens desse livro se hospedam). A obra foi publicada no ano seguinte, 1912, e, embora menos diretamente autobiográfica que Os Buddenbrooks, trata-se de sua obra mais confessional.

Influenciando o romance, por um lado, a origem familiar e o ambiente da ética protestante de Lübeck, por outro lado, a voz interior e a influência de sua mãe brasileira, que o faziam interessar-se menos pelos negócios e mais pela literatura. A influência da mãe acabou por levar a melhor.


RESUMO DA HISTÓRIA

É narrada a aventura do personagem Gustav Aschenbach, escritor (poeta), que mora em Munique e tem uma crise existencial para a qual a única solução que encontra é viajar. Acaba chegando em Veneza, onde avista no hotel em que se hospeda um adolescente, Tadzio, de 14 anos, hospedado com a mãe, duas irmãs e uma institutriz francesa desses adolescentes. O que de início parecia ser somente uma atração estética pela beleza transfigurante do garoto, acaba se tornando uma atração sensual (Mann não usa o termo sexual), que é justificada de uma maneira filosófica. No entanto, essa atração acaba provocando no poeta um desejo intenso de estar próximo ao garoto, mesmo de tocá-lo, causando-lhe uma impressão profunda, misto de mistério, culpa, angústia e sentimento de horror. Mesmo Veneza passando por uma epidemia de cólera, que era escondida dos turistas pelas autoridades, o poeta estende sua estada no hotel em função da presença de Tadzio. Após descobrir a verdade sobre o mal que assola Veneza, ele ainda insiste em permanecer e um dia descobre que a mãe de Tadzio decide partir. Aschenbach passa a última tarde do garoto na praia, assistindo naquele um sorriso de despedida, momento em que, cheio de prazer, morre por ter adquirido a cólera.


ENREDO

A crise que Aschenbach teve em Munique parece ter sido agravada ao ter avistado um desconhecido de aparência nada comum saindo de uma igreja e pela troca, momentos depois, de olhares entre eles. A reflexão sobre quem seria e o que fazia esse homem causou nele profunda impressão. Essa percepção no outro do estrangeiro, do não reconhecível, não espelhando a si mesmo (e talvez nele um adulto não funcionasse como alguém próximo, desejável), aparece como algo totalmente fora dele. O que a visão do outro despertou nele o remete à sinistralidade, a algo não reconhecível, fantasmático (tendo, de alguma forma, relação com seu desejo!), fora do mundo. Reconheceu-o (ou imaginou-o) como corajoso ou mesmo selvagem e a troca de olhares entre eles foi sentida por Aschenbach como uma ação belicosa vindo do outro, o que levou o poeta, mesmo sem querer, a desviar seu olhar e seguir seu caminho.

Esse confronto com o eu-outro leva o escritor a apontar somente defeitos nesse outro, os que talvez não quisesse reconhecer em si mesmo (como exterior selvagem, que deve ficar à distância, contemplado apenas, ou seja, perigoso à aproximação). O olhar belicoso do outro em resposta a seu olhar: que desejo passaria por aí? O outro como algo a ser anulado em combate (interno e externo – como matar na guerra). Essa cena imajada poderia funcionar como descrição de si mesmo: um mundo estranho, com outro tipo de funcionamento, denotando um desejo enigmático.

Isso poderia apontar, em termos fenomenológicos, para uma espécie de despersonalização, um ficar fora de si, que começa pela dificuldade de reconhecer a imagem especular, em que o sujeito, ao não se encontrar no espelho-olhar do outro, começa a ser tomado pela vacilação despersonalizante. Se o que é visto nesse olhar causa angústia, é por não haver reconhecimento dessa imagem por parte do Outro (tesouro do significante, lugar do desejo e também lugar da falta). Esse imaginário que pode tornar-se real, o encontro com o outro fora do espelho, tem algo que leva necessariamente ao confronto, o sujeito encontrando nessa imagem alterada de seu corpo o paradigma de todas as formas da semelhança que levarão para o mundo dos objetos um toque de hostilidade, projetando nele a transformação da imagem narcísica, que, do efeito jubilatório de seu encontro no espelho, transforma-se, no confronto com o semelhante, no escoadouro da mais íntima agressividade. Há uma provocação na mirada e isto é totalmente freudiano, e ela se produz quando no sujeito existe o sentimento de estranhamento (sinistralidade) frente a esse olhar que vem do outro e que o leva a fixar o ponto de onde se é olhado. Sem dúvida, no fundo do olho, o quadro do outro se pinta. 0 quadro, certamente, está no olho de quem olha e quem olha também está no quadro e se sente olhado.

Esse objeto que se enxerga no outro (objeto a causa de nosso desejo) não é especularizável, não é apreensível na imagem, justamente por ser inconsciente. O olho enxerga o que não enxerga, como se houvesse impotência no olho do próprio voyeur, aparecendo impotente ao Outro. O olhar aparece do lado de fora, “se é olhado”, quem olha se faz quadro para o olhar do outro (ser olhado de volta pelo outro, faz de Aschenbach quadro desse olhar outro que o molda).

A experiência no nível do Outro, do desejo do Outro e de seu gozo, coloca em jogo essa estranheza a respeito do que é para o sujeito sua própria imagem, de como seu corpo pode se oferecer a esse gozo, a ausência em que ele está constituído toma corpo em uma imagem de si que é para o sujeito o estranho, o raro. O raro no sentido de não familiar e estranho que é próprio do sinistro. É a estranheza a respeito de uma imagem de si, o fenômeno do duplo (ver-se duplicado no outro), essa vivência do sinistro é correlativa a uma dissociação, um desdobramento, que responde à divisão do sujeito (sujeito barrado em relação ao objeto causa do desejo, fórmula do fantasma).

É esse então o primeiro perder-se de Aschenbach no olhar do outro (Outro), olhar fascinante, enigmático em si mesmo. Olhar que é o ponto de irradiação que aponta para a função do desejo revelado no campo visual. Mirada que aponta para uma Outra cena (Schauplatz), que supõe o Outro, a função do Outro como mirada, que teria como função a de criar uma realidade que tem a ver com a falta constitutiva da angústia de castração, situando o objeto a (objeto causa do desejo) como olhar que atrai o sujeito, que cria Outra realidade, por detrás da qual está a falta, castração no Outro. Olhar do outro como estrangeiro em que há a exclusão de certo gozo, um outro gozo do qual o sujeito não participa. Na realidade objetiva, o poeta se sente cobrado com relação a sua obra, a entregar sua arte quase de forma compulsória, sem descanso ou prazer.

Isso remete ainda ao fato de que o reconhecimento de si no outro (como a si mesmo no espelho) seja uma situação dramática, na qual se impõe uma identificação com um corpo separado, esfacelado e que pede junção. O olho do outro como espelho, portanto, subverte a problemática da imagem inconsciente do corpo. E, nesse sentido, a imagem escópica torna-se o substituto consciente da imagem inconsciente do corpo próprio. Isso transparece no sentir-se envelhecendo, queixa constante do personagem, como se seu corpo não tivesse mais lugar no mundo desejante.

Mas qual o quadro que faz de si mesmo a partir dessa imagem invertida que vem do outro no lugar do Outro? Aschenbach começa a refletir sobre o peso de seu envelhecimento e de que estaria precisando de sangue novo. Contradição, porque ao mesmo tempo desejava ardentemente ficar velho, talvez fruto de sua melancolia momentânea. A forma de enfrentar isso seria viajar, sair da Alemanha, mas não da Europa. Também era um desejo de procurar o estranho e o sem relação, que para ele seria fácil de encontrar (mas que ao mesmo tempo o tenderia para a fuga, como ocorreu frente ao estranho que saíra da igreja). Procurava também quietude, mas ao mesmo tempo o incomparável e diferente, algo que provavelmente ele não conseguisse simbolizar (o Real, a Coisa?)

Essa crise parecia ser a soma de conflitos interiores e exteriores, não ficando evidente se estes se referiam a fatos pré Primeira Guerra Mundial (desentendidos entre Alemanha e França), pois se supõe que a história se passe na mesma época de sua publicação (“...tarde primaveril que durante meses mostrara ao nosso continente uma fisionomia anunciadora de conflitos”). Os conflitos internos se referiam também a certa paralisia em sua criatividade ou em sua vontade para concluir suas obras artísticas, já que era poeta famoso e se sentia cobrado a continuar produtivo.

Já passava dos 50 anos, seus livros haviam sido indicados para fazer parte do currículo de educação para adolescentes, o que lhe valeu o título de Von em seu quinquagésimo aniversário, outorgado pelo príncipe regente (Kaiser Guilherme 2º). No entanto, se sentia sozinho, pensando na proximidade da morte, sonhando com um além. Desejava distanciar-se do outro e do mundo, com desassossego de não caber em lugar algum.

Essa Europa que o atrai e segura, mas igualmente o aflige, essa Alma europeia que aparece como Outro, lhe cobra colocar-se em suas obras, autobiograficamente. Europa mãe, que não pode ser abandonada, que aponta a necessidade da concordância entre a vida do autor e a da gente do seu tempo, que isso apareça no conteúdo de sua obra para que esta tenha efeito (provoque simpatia). Mas ele queria criar heróis passivos, fracos (retratos de si mesmo?), pois acreditava que não existiria outro heroísmo que o da fraqueza. Sentia-se como poeta dos oprimidos, aniquilados, mas que ainda ficam de pé, com físico franzino, mas arrebatados (as pessoas assim se reconheciam em sua obra). Pensava que a juventude seria cativada somente pelo problemático em sua obra, que parecia ser o caso dele mesmo.

Tinha marcas no rosto como sinal de sua intelectualidade (de aventuras imaginárias e espirituais!). Sublimava sua sensualidade, vivia somente para a arte, que lhe permitia uma vida elevada. Mas se apresentava cansado dessa sublimação e da leveza das paixões vividas? Queria viver algo diferente em que sentido? Insaciabilidade de uma má vontade, diz ele; estaria aí a ação de uma falha/esgotamento da sublimação? Tinha maestria, domínio sobre sua arte, mas esta já não lhe agradava tanto, apontava para outra tendência.

Planejou a viagem: ela o distanciaria de sua obra, de seu trabalho. Sabia que era um ímpeto de fugir: saudade para a distância, ânsia por libertação, pensa ele. Esse seu desejo repentino de viajar vinha de qual necessidade? A viagem lhe serviria como medida higiênica contra a vontade e a inclinação em relação a que? A uma sensualidade recalcada e na iminência do retorno desse recalcado? Pensava na questão do mal, do proibido, no moralmente impossível. Ele, poeta, homem envelhecido, baniu de sua obra toda palavra vulgar e foi modelo para a educação da juventude. O poeta se sente completo com sua poesia, mas se sente vazio em relação a algo que desconhece. Por isso parte em viagem para o que parece ser descanso, mas na verdade é a busca por um desejo que satisfaça sua vontade de viver. Desejo sensual que não ousa reconhecer (assim como Mann um dia partir para Trieste em busca de um modelo perfeito).

Isso poderia receber, portanto, o rótulo de fuga? O sujeito que se precipita nessa corrida, sempre mais ou menos em uma posição infantil, a uma fuga da cena, à partida errante para o mundo puro, ao encontro de algo rejeitado, recusado por toda parte, esse parece ser o movimento de Aschenbach. Sua partida é justamente a passagem de sua cena interior para o mundo (da mesma forma como se expressava em seus livros, da mesma forma como Mann deveria se expressar em seus livros, da mesma forma como o Outro deseja que isso seja expressado...).

Viajou. O primeiro lugar para onde foi não o agradou, não encontrando o que queria. Lembrou-se de um outro lugar em que já havia estado e para lá rumou, talvez na tentativa de reencontro com algo que não reconhecia. Rumou a Veneza, cidade dos canais. Depois fica-se informado que também fugira da viagem em outro ano feita a essa cidade, tendo como justificativa o clima (vento e frio) da época em que lá esteve. Por que voltar, então?

No barco para Veneza ele se depara com um velho que, para ele, se fazia de jovem (jovem falso, passava-se como um dos jovens), mas tinha características da velhice. Para ele o velho não poderia conviver com jovens; que tipo de relação seria possível entre eles?, somente quando era para educá-los, como ele fazia através de seus livros? Espanto do poeta: reconhecer-se na imagem do outro, apontando seu sentimento de velhice, justo ele que deveria se esconder da juventude. Mas não seria justamente juventude o que buscava? Não seria essa repetição de viajar e, dessa vez para uma cidade já conhecida, a busca de algo de si perdido, numa infância perdida?

Do barco para a praia pegou uma gôndola, cujo gondoleiro não o obedecia, mas que usava de lógica em suas respostas quando questionado. Por essa lógica, pareceu conformar-se com esse encontro com o Real, presença de algo que não conseguia assimilar, mas considerado, no entanto, como um encontro agradável, quando não há o que fazer (impossível tomando conta). Deixou-se levar pelo gondoleiro, ser conduzido bem por essa Coisa inscritível. Cena semelhante ocorreria posteriormente na estação de trem de Veneza, quando tentou sair da cidade pela primeira vez por não ter gostado do clima da mesma (nova tentativa de fuga, dessa vez fracassada!). Descobriu que sua mala tinha sido despachada para outra cidade e que teria que continuar em Veneza até essa mala ser trazida de volta. Como não queria partir por causa de Tadzio, ficou contente, pois algo exterior a ele tomou a decisão por si de permanecer naquela cidade. Aparecia aí a luta entre a inclinação espiritual e a capacidade corporal: frente à impotência, sentiu-se relaxado e contente, neste caso pelo destino ter decidido por ele (novo encontro com o Real, mas novamente assimilável...simbolizado?).

A primeira visão de Tadzio foi no hotel em que se hospedou em Veneza. Considerou-o como a perfeição da beleza, lembrando-lhe esculturas gregas, como pura perfeição da forma, como obra de arte bem sucedida. Houve um arrebatamento do poeta perante essa obra prima, desse garoto que era belo como um deus, cujo aspecto inspirava ideias mitológicas. Descreve Tadzio primeiramente com esse distanciamento que aparece como defesa frente a algo intocável e que só pode ser olhado e admirado à distância. A descrição do garoto como algo frio, pedra talhada perfeita, como alguém ainda infantil, com beleza verdadeiramente divina, ou seja, alguém no éden e inalcançável, parece deixá-lo sossegado momentaneamente com relação a essa visão, que merecia somente ser adorada e que de alguma forma apontava para seu próprio interior. Essa satisfação da pulsão escópica sublimava o que ainda não podia aparecer. A satisfação da pulsão é sempre parcial e dá conta de uma sexualidade que caminhou para outro fim, mas que mesmo assim ainda pode clamar pela satisfação primária, que é a sexual (eis o risco em que o sujeito pode se encontrar e se angustiar).

Com o tempo aquele corpo no formato de estátua grega (notara que as axilas ainda eram lisas como nessas estátuas e que disciplina, que precisão de pensamento era expresso naquele corpo perfeito, rijo e juvenil!) foi tomando mais vida, mas não sem antes passar pela contemplação espiritual, que ainda protegia Aschenbach do reconhecimento do desejo sexual presente. Assim, de tanto observar Tadzio na praia e seguir o garoto pelas ruas de Veneza, conhecia cada linha e pose de seu corpo soberbo, sentia admiração e alegria espiritual em sua contemplação. Via-o como estátua e espelho! Seus olhos envolviam pulsionalmente a nobre figura e ele acreditou, como resposta vinda nesse quadro por ele formado, compreender o belo em si, essa forma como pensamento divino, a única e pura perfeição que vive no espírito e da qual uma imagem e alegoria humana aqui estava erguida, leve e graciosa, para adoração. Era um outro que ele mirava e que não o confrontava, não o colocava numa posição belicosa, justamente por ser bela e desejada.

Da contemplação espiritual dá-se mais um passo e se chega à atenção do intelectual para as coisas sensuais (ainda não sexuais). Sentia embriaguez; e, sem hesitação, avaro mesmo, o artista envelhecido recebeu-a calorosamente... não estava escrito que o sol desviava nossa atenção do intelectual para coisas sensuais? E só com a ajuda de um corpo ela consegue elevar-se para uma contemplação ainda mais alta... servir-se do corpo e das cores da juventude humana. Há uma citação do Fédon de Platão no romance sobre a sensualização da beleza, do caminho espiritual que passa pelos sentidos, mas que seria um caminho errado e pecaminoso, que leva necessariamente à confusão. Seguir o caminho da beleza sem Eros não é possível. Parece haver reconhecimento e ao mesmo tempo negação em Aschenbach sobre seus desejos sexuais pelo garoto. Isso se reflete em sua ação, numa situação em que quis espionar pela porta do quarto de Tadzio, mesmo sob o perigo de ser apanhado e surpreendido numa situação tão louca. Sentia-se em posição pouco masculina (por querer ser amado? por assumir a posição de erastes em vez de eromenos?) e queria parecer que o Eros que se assenhorara dele era, de uma maneira qualquer, especialmente favorável e inclinado a uma vida de heroísmo (qual a posição do herói?)

Aos poucos, quanto mais preso ficava dessa pulsão escópica, mais ia se dando conta de seu desejo pelo garoto e começava a considerar-se sujo (suas próprias mensagens invertidas que retornam do Outro sobre pureza e indecência). Considera-se inconstante, desconhecedor de seus próprios desejos (sobre ficar ou partir de Veneza), pois com a percepção da presença da epidemia (metáfora da peste, do mal), começa a surgir nele um receio com relação a ter que se afastar de Tadzio. A partida era penosa por causa do garoto: somente o lugar em que se encontrava o enfeitiçava, afrouxava seu querer, fazia-o feliz. A praia lhe permitia o estudo da encantadora visão do garoto, dando-lhe vida. Percebeu-se apaixonado por Tadzio e reconheceu assustado que não saberia mais viver sem ele. Esse seu segredo, cuja preservação lhe dizia tanto, ele o assemelha ao grave segredo da cidade em relação à peste, ou seja, ambos são terríveis aos olhos do mundo. O mal estava em Veneza (dentro e fora dele), mas ficou para enfrentar esse medo.

Esse desejo (que não é nem o apetite de satisfação, nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à segunda, o próprio fenômeno de sua fenda) que se forçava a reconhecer levava-o à ação perigosa, mas ao mesmo tempo apontava para um fracasso para alcançar o objeto desse desejo, seja pela função da moral (polícia!), seja porque ele teria que responder ao grande Outro em relação a esse fantasma escópico. Ele estava em cada lugar desse seu fantasma, fazendo-se conjuntamente olhar e objeto do olhar do outro (Outro), do belo cativante.

Havia, portanto, o desejo de se aproximar de Tadzio, tocar-lhe partes do corpo. E uma cena que ocorre entre as madeiras de uma cobertura que levava à praia em que persegue o garoto e não consegue alcançá-lo (como em um sonho, onde a censura impera ainda), aponta, segundo a percepção do poeta, que esse passo que não dera podia ser para o bem; o fácil e o alegre (o garoto deixar-se ser apanhado) podia levar à sanável desilusão (corpo de Tadzio como objeto a inalcançável e provável fonte de insatisfação e angústia). A verdade era que ele (o idoso!) não desejava a desilusão, porque a embriaguez lhe era cara demais (conseguir o objeto da satisfação e dissolver esta) e preferia talvez manter o objeto quase ao alcance, mas nunca alcançado. Por isso não percebe se fora por consciência, ou por desleixo e fraqueza, que não realizara suas intenções, ao mesmo tempo em que se dá conta do temor quanto a se o guarda da praia o teria visto nessa cena de perseguição, temendo se passar por ridículo.

A vergonha aqui pode ser um sinal da atividade pulsional expressa pela pulsão escópica, da dúvida que concerne aos objetos duvidosos (proibidos?), em que se distancia o acesso ao objeto supostamente visado (olhado), que seria a perda do sujeito no caminho em que ele é sempre passível de entrar por meio do embaraço. Agir por essa pulsão escópica é continuar na busca do objeto pelos caminhos de alguns objetos, em sua angústia e dúvida, numa falsa sensação de satisfação, que o leva a uma busca infinita de objetos não encaixantes de uma falta não reconhecida. De alguma forma o poeta tinha consciência dessa situação provavelmente pelo alto grau de que sua imaginação dispunha para criar esse tipo de situação em suas próprias obras.

Em certo momento, no auge de sua paixão, murmurou a eterna fórmula do anseio – impossível, absurda, ridícula e, no entanto, sagrada, digna mesma: “Eu te amo!”. No entanto, ao pronunciar essa frase para ninguém e para si mesmo, não se podia dizer que sofria. Cabeça e coração estavam embriagados e seus passos seguiam as instruções do demônio, que sente prazer em pisar com seu pé a inteligência e a dignidade humanas. Amor sem paixão? Amor sem razão? Como qualquer amante, desejava agradar e sentia um medo amargo de que isto não se pudesse dar e, à vista da doce juventude que o enfeitiçara, sentia nojo do seu corpo envelhecido.

Tadzio no lugar de objeto causa de desejo de Aschenbach também ocupa o lugar do amor...Como é que o a, objeto da identificação, é também o a, objeto do amor? Ele o é na medida em que arranca metaforicamente o amante do status em que ele se apresenta, o de amável, eromenos, para transformá-lo em erastes, sujeito da falta, mediante o que ele se constitui propriamente no amor. É isso que lhe dá o instrumento do amor, uma vez que se ama, que se é amante com aquilo que não se tem (Tadzio sendo inacessível para Aschenbach)

Conclusão

Sujeitos como Aschenbach são mais frequentes do que se pensa, inteiramente subjugados ao campo escópico, tomados pelo olhar que contém o objeto a, e sua queda pode passar inadvertida ao se reduzir a zero, a ponto de se colocarem na posição de uma marionete (Cena de Aschenbach perseguindo Tadzio sem alcançá-lo, seu corpo numa ginga doentia).

Ser captado pelo belo, colocar nele o desejo (amor e sexualidade e, por que não dizer, também a morte), que passa pelo fantasma (fantasia. Tadzio no lugar de a, somado à sua beleza, ocupa o lugar junto ao sujeito barrado do fantasma de Aschenbach, produzindo um gozo que para o músico se tornou mortífero. Este goza de uma imagem que sabe ser inalcançável e insatisfatória, imagem que apenas contorna o objeto e volta ao mesmo lugar com alguma satisfação, mas sempre parcial. Tadzio não tem como completar Aschenbach!. O belo toma corpo e atrai o toque, que poderia ter se transformado em contato sexual, mas muito provavelmente sem nenhum prazer para o músico. Então, em que os fatores imaginários são inertes? É que em seu ponto de partida, o imaginário era o lugar do gozo: o sujeito goza do imaginário. Mas esse imaginário, a que preço se tem acesso a ele? Cabe dizer que para o poeta esse imaginário é primordialmente escópico, prende-se à visão, no caso, de um adolescente, o garoto mais lindo do mundo!

Nesse jogo a pulsão = escópica, o objeto a = olhar e a zona erógena = olho. A função do olhar no fantasma, como pulsão escópica, pode servir de modelo, demonstrando a antinomia da visão e do olhar (como órgãos duplicados e separados) que teve o objetivo de atingir o registro imaginário do objeto perdido. A posição subordinada do sujeito por esse fantasma é causada por esse objeto. Na pulsão escópica, o sujeito encontra o mundo como espetáculo que o envolve. Ele é aí a vítima de um logro, pelo qual o que sai dele e o enfrenta não é o verdadeiro a, mas seu complemento, a imagem especular, (i)a, o outro imaginário da discórdia. O sujeito é arrebatado pelo espetáculo, regozija-se, esbalda-se, mas se angustia e se apavora frente a essa mirada.

A pulsão escópica, enquanto representante da falta posicionada pelo complexo de castração, exprime ao sujeito a angústia diante desta recordação primária de que ele é castrado, sempre em falta, o olhar, enquanto objeto a, exprimindo que ele é objeto a reduzido, por sua natureza, a uma função de desaparecimento, deixando o sujeito na ignorância do que há para além da aparência.


FILME DO VISCONTI

"O menino mais bonito do mundo" é um documentário de 2021 sobre Björn Andrésen e os efeitos da fama sobre ele quando apareceu no filme de Luchino Visconti de 1971, Morte em Veneza, em que fez o papel de Tadzio. Visconti e sua equipe rodaram o mundo procurando por um garoto que se encaixasse no perfil do personagem. Nesse documentário o ator conta como foram as filmagens, a relação com o diretor italiano e as repercussões negativas de ter vivido Tadzio no cinema.

Heinrich e Thomas



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