Freud, na conferência 29, de 1931, escreve sobre a teoria dos sonhos: “O caráter exótico das asserções que ela foi obrigada a apresentar, fê-la desempenhar o papel de senha, cujo uso decidiu quem poderia tornar-se seguidor da psicanálise e a quem ela permaneceria para sempre incompreensível”. Ele usa em alemão um termo hebraico para indicar essa senha, que é 'shibboleth'
que em português pode ser traduzido como xibolete ou xibolê, e que em hebraico significa espiga de trigo. Por que Freud usa esse termo como senha, como foi traduzida na edição em português de suas obras? Talvez porque venha da história bíblica narrada abaixo.
O livro de Juízes (12:5,6) relata que nos dias de Jefté, os gileaditas fecharam a passagem do rio Jordão que dava acesso à terra de Efraim, impedindo que os efraimitas retornassem a suas terras depois de serem derrotados na guerra entre as duas tribos. Disfarçados entre o povo, os efraimitas eram submetidos a um teste quando desejavam cruzar o rio: os gileaditas perguntavam: “és tu efraimita?” Caso a resposta fosse “não”, tinha de pronunciar a palavra “xibolete”; como essa pronúncia não lhes era habitual, só conseguiam responder “sibolete”. Reconhecido o sotaque de Efraim, a pessoa era morta. Por isso, morreram quarenta e dois mil de Efraim naquela ocasião.
A pronúncia do termo hebraico servia como uma senha de passagem ou de retenção, de vida ou morte. Remete ainda a um não saber da língua que barra o desejo de voltar a suas origens e aos braços de seus compatriotas. Desejar fugir de uma terra onde se é odiado e poder voltar a uma em que se é amado passa pela língua, e deveria passar pela língua materna, que, no casos dos efraimitas, poderia significar a morte ou a salvação.
Freud parece usar esse termo como divisor entre aqueles que reconhecem a psicanálise e podem até se tornar psicanalistas e aqueles que, por resistência ou ignorância, se distanciam dela. Isso pode estar relacionado à linguagem usada no meio psicanalítico, termos novos criados ou antigos reformados pela teoria. Linguagem que cria laço social entre psicanalistas, demonstrando que estão inteiros na língua quando fazem uso da teoria e da prática analítica, mas também podendo isolá-los do laço social com outros saberes, criando e mantendo resistência à psicanálise.
A linguagem cria identidade no grupo, marca simbolicamente uma comunidade. Para entrar numa comunidade precisa-se de um xibolê como inscrição, falar a mesma língua e aceitar as mesmas ideias. Implica-se e essa implicação depende de um contexto específico compartilhado pelos participantes da comunidade. O “x” (de xibolê?) que se subentende no discurso dessa comunidade mostra que a compreensão do seu discurso depende muito mais da prática discursiva do que compreensões intelectuais arrojadas. O “sotaque” do grupo acelera essa compreensão e cria segurança.
Esse “X” pode se tornar mais complicado dentro da própria comunidade (luta por poder interno, por exemplo) e aparecer como jogo: um interlocutor, ao se dirigir a outro proferindo X, simula sinceridade e finge respeito às regras do princípio de cooperação para ocultar sua verdadeira intenção de levar o outro a acreditar que X significa X mesmo, quando na verdade significa Y. (lembrando o chiste citado por Freud no texto Os chistes e sua relação com o inconsciente, de 1905, em que dois judeus tem o seguinte diálogo na estação de trem: para onde vais?, pergunta um. Vou para Lemberg, responde o outro. Ao que o primeiro retruca: por que me dizes que vais para Lemberg para que eu pense que vais para Cracóvia, quando de fato sei que vais a Lemberg?). Isso pode ser barrado em comunidades em que teores morais são arraigados, como os religiosos, por exemplo, que rezam como Jesus, no Sermão do Monte, aconselhou: “Seja, porém, a tua palavra: sim, sim; não, não. O que passar disso vem do maligno” (Mt. 5:37). Malignidade dos xibolês, senhas para o engano e o pecado, portanto, para a morte.
Politicamente, os xibolês dentro da comunidade podem servir muito mais para exclusão. Um coxinha jamais aceitaria um petralha em seu grupo, e um petralha teria dificuldades de diálogo com um coxinha. O reconhecimento de um ou outro passa por termos discursivos bem diferenciados, como comunista e fascista.
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