Discurso de Roma (“primeira”), 1953, falado (mas não lido, por ter
ficado muito longo) no Congresso de Roma: encontro entre psicanalistas de
língua francesa e românica. Lacan foi convidado a fazer o relatório desse
encontro (meses antes ele já havia feito a fala inaugural da Sociedade Francesa
de Psicanálise, em Sainte-Anne, apresentando o Simbólico, o Imaginário e o
Real). É um discurso de circunstância, com tom de denúncia. Texto dirigido a
seus críticos, implicitamente contendo sua defesa pelas pressões que vinha
recebendo em função do encurtamento das suas sessões.
Prefácio (texto em terceira pessoa)
Antes do congresso houve dissenções na Sociedade Psicanalítica de Paris
(SPP) em função dos rumos colocados para a formação (ou centrados na medicina
ou na psicologia). Sacha Nacht (presidente de 1948 a 1952), pregava a assimilação
do ensino freudiano aos ideais da medicina e tentou colocar seus ideais no
estatuto do Instituto de Pesquisa criado em 1952 (que substituiria uma comissão
de formação que funcionara desde a fundação da SPP em 1926), inicialmente
independente da Sociedade, que acabou se tornando, sob sua direção,
hierarquizado, com um curso rígido de formação. Seu projeto se ligava a uma
ortodoxia clássica, baseando-se numa política autoritária ligada à sua pessoa.
Ele defendia o respeito à ordem estabelecida, o culto da adaptação e a
submissão a modelos institucionais.
Em junho de 52 Nacht (como presidente da SPP) dá um golpe: cria um
comitê para dirigir o Instituto e se coloca e coloca nele os seus aliados,
acumulando o conjunto das funções diretivas, colocando o Instituto como
dependente da Sociedade. O novo estatuto proposto direciona uma formação
praticamente neurobiológica e definindo a psicanálise como útil à medicina.
Um grupo contrário se levanta contra Nacht, entre eles Lacan (então
vice-presidente da SPP) e Daniel Lagache, conseguindo alguma reversão da
situação, mas frente à insistência daquele de manter acúmulo de poder, ameaçam
a secessão. Isso não acontece de imediato. Conduzem a briga através da
pressão institucional e conseguem uma demissão coletiva do comitê. Lacan
se candidata a diretor provisório do Instituto e vence. No entanto, a tensão
continua. Lacan faz de tudo para impedir o rompimento com a SPP, enquanto Dolto
a defende.
Mas não seriam suas sessões de tempo variável o motivo principal dos
conflitos internos da SPP? Em três ocasiões ele defende as sessões de tempo
variável frente à SPP, em 51, 52 e 53, sempre justificando a interrupção da
sessão em frases significativas que apontam para o desejo inconsciente (segundo
relatos, pois não há texto publicado desses encontros). Nessa defesa está a
importância de uma nova doutrina, mas também a possibilidade de ter uma
quantidade maior de candidatos a psicanalistas e de ganhar mais
dinheiro. Nas três vezes ele prometeu à comissão que iria se adaptar às
regras, mas nunca o fez. Incita seis analisantes a mentirem frente à comissão.
O temor de Lagache e Nacht é que ele se tornasse um mestre em função do carisma
que provocava.
Em janeiro de 53 Lacan apresenta um projeto de emenda aos estatutos de
Nacht, afirmando que a psicanálise não é redutivel à neurobiologia, à pedagogia
ou à psicologia, alfinetando Nacht e Lagache, apesar de continuar sendo
amigo dos dois. Mas sua proposta tem falhas e não resolvia a questão do
autoritarismo assumido por Nacht. Este consegue aliados, inclusive a princesa
Marie Bonaparte, e ganha na votação. Mas isso causa uma divisão ainda maior
do que já havia, o que anuncia a cisão eminente.
O Instituto começa a funcionar em março de 53 e os alunos se submetem às
regras de forma forçada e desagradável, pelas limitações que elas lhes colocam.
Nesse sentido, alunos e mestres se revoltam. Jenny Roudinesco rompe com
seu analista (Nacht) e instiga o rompimento de outros alunos, enquanto
Lacan clamava por reforma.
Lagache, instigado e apoiado por estudantes e mestres, dá entrada nos
documentos e redige rapidamente um estatuto, criando a Sociedade Francesa de
Psicanálise, junto com Françoise Dolto, Jenny Roudinesco, François Pérrier,
entre outros. Para Lagache, não era interessante que Lacan participasse desse
movimento, pois, com seu carisma, acabaria tendo todo o mérito da fundação da
nova sociedade.
Lacan justamente não os seguiu de imediato (apesar de ter dado apoio a
Lagache), ficando ainda algumas semanas na SPP, acreditando que pudesse
resolver sua situação. No entanto, desgostado tanto pela ala conservadora
quanto pela ala liberal, sendo acusado de ser o mentor do processo de
dissensão, acaba pedindo demissão (na verdade, foi retirado) do cargo de presidente
da SPP.
Nem o grupo dissidente e nem Lacan teriam percebido que com sua saída da
SPP deixariam de ser membros da IPA? Não conseguiram filiar a SFP e nem garantiram
filiação individual. Um longo processo de filiação se iniciará, em que são rifadas
as cabeças de Lacan e Dolto, ocorrendo traições, mágoas, etc.
Filiado à SFP, Lacan procura ter lugar de destaque, por isso busca apoio
dos colegas psiquiatras, do partido comunista e da igreja. Em 53 ele tinha em
seu divã um terço dos alunos da SFP, mostrando que tinha bastante poder na nova
Sociedade e que não conseguiria tocar essa quantidade de alunos, mais pacientes
particulares, seguindo as regras da IPA. Não tinha como esconder que praticava
sessões cada vez mais curtas. E no discurso de Roma legitimava de maneira
indireta a noção de sessão de duração variável.
Em Roma ele gritaria para ser ouvido, se fosse preciso, para renovar a
teoria e prática psicanalítica, principalmente no que ela retira da linguagem.
Ao mesmo tempo em que faz sua crítica ao que reconhece como desvios
psicanalíticos e que ele chama de estilo tradicional praticado na formação da
IPA.
Aponta que Freud cria a IPA para proteger a psicanálise em sua
transmissão, mas que os excessos formais a amarraram e impediram que os candidatos
a analistas pudessem pensar por si mesmos e tivessem que aceitar a opinião dos
doutos, psicanalistas da primeira geração (estaria se referendo certamente a
sua experiência ruim de análise com Löwenstein).
Qual a proposta de Lacan? Apontar essas falhas da IPA/SPP e mostrar
novos caminhos, com contraposição de teses detalhadas, mostrando os desvios e a
correção dos mesmos.
Lacan não gosta de disputa e se surpreende ao saber que o grupo que
rompeu com a SPP, ele incluso, foi acusado de não ter fornecido justificativa
doutrinal para isso (que a secessão fosse justificada com um debate científico),
perguntando se talvez não devesse ser outro o motivo que não esse (doutrinal) para
a IPA manter a comunidade internacional dos analistas. Mas não seria já um
questionamento feito a ele pelos boatos que corriam na SPP em virtude da
diminuição que fazia do tempo de sessão, conseguindo por isso boa parte dos
analisantes didatas da Sociedade, causando afetos nos outros analistas didatas?
Num debate científico essa questão certamente seria trazida à baila (até então
ele havia justificado em três anos seguidos o encurtamento das sessões, sempre
prometendo se corrigir e pedindo para que seus analisantes mentissem frente à
comissão de formação da SPP).
Reafirma seu apego à teoria
freudiana, principalmente em função das leituras feitas e dos mal-entendidos
sobre ela. Rompe com a SPP/IPA e não com a psicanálise! Mas tenta trazer para
junto dela, em seu benefício, a antropologia (Lévi-Strauss) e a filosofia
(Hegel, via Kojéve). E apresenta o projeto de retomar os conceitos freudianos
gastos pelo uso e fazer seu retorno a Freud.
Lacan se
coloca no lugar do ensinante e sua responsabilidade de falar a partir de sua
experiência, pois é desta prática que se retira as regras técnicas e não de
receitas prontas. Negligenciar isso é não reconhecer o valor dessa experiência
para uso no campo psicanalítico (lembrar que ele já havia realizado dois
seminários, um sobre o homem dos lobos no ano acadêmico 1951/52, e sobre o
homem dos ratos em 1952/53, em seu apartamento na Rua de Lille. Nesse mesmo ano
faria seu primeiro seminário oficial, Os escritos técnicos de Freud, no ano
acadêmico 1953/54, na sala de repouso do Hospital Sainte-Anne).
A concepção de campo da IPA poderia se harmonizar com uma concepção de
formação analítica que fosse a de uma autoescola, em que o candidato didata
sairia com a carteira de habilitação e a IPA quisesse, além disso, controlar as
condições do carro a ser dirigido. Comparação que Lacan faz com o resultado
final da formação, em que o candidato aprovado a analista sai despreparado para
a prática. É bastante duro com os analistas didatas da IPA e não condescende
com os candidatos formados.
Lacan pergunta se a psicanálise, ao querer aplicar aos seus praticantes
corporados seus mesmos princípios, ou seja, sua concepção sobre o papel que os
analistas tem junto aos doentes, sua relação com seus pares e sua missão de
ensino, não estaria ela apresentando uma ambição desmedida.
Tinha pressa por apresentar esse discurso em Roma, em virtude de sua
saída da SPP e da criação da SFP. Aponta que nessa pressa a verdade encontra
sua condição, lembrando o aforismo sobre os três prisioneiros. Urgências
(daquele momento) superadas em sua fala, escreve ele, ao apontar nela que
chegara o momento dele tomar partido e denunciar a desordem da situação,
antecipando uma certeza que poderia equilibrar sua escolha de lado e essa
desordem que denuncia.
Não informa, porém, que meses antes havia sido formada no Congresso IPA,
em Londres, um comité composto por Winnicott, Lampl de Groot, Greenacre,
Eissler e Hoffer, encarregados de examinar o pedido de filiação da SFP e
resolver a questão dos “desvios” (os de Lacan) da análise didática.
(Baseado no texto História da Psicanálise na França, de Elisabeth Roudinesco)
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