A resiliência veio da física e a psicanálise veio da psicologia.
A resiliência trabalha com o trauma e a psicanálise começou com o trauma, ou pelo menos foi isso o que Freud inicialmente escutou das histéricas.
O trauma da resiliência geralmente se dá pela sobrecarga que vem de fora ou de dentro e que transborda a capacidade do indivíduo lidar com essa situação, levando ao adoecimento. O trauma da psicanálise também estava relacionado (teorização no Projeto para uma psicologia científica [Entwurf], de 1895, que Freud abandonou e que depois foi sendo diluída em outros textos, principalmente no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos) a uma sobrecarga tanto no neurônio phi (ligado ao exterior) quanto no neurônio psi (limitado ao interior do corpo), o que poderia desencadear sintomas físicos (conversões histéricas) e psíquicos (neuroses de angústia).
A resiliência foi encampada pela psicologia, principalmente por uma psicologia chamada positiva. A psicanálise saiu da psicologia e se distanciou cada vez mais dela. No entanto, certo manejar clínico da psicanálise foi apropriado pela psicologia, inclusive tornando-se "matéria" dos cursos de psicologia no Brasil.
Em que momento a resiliência pode ter cruzado com a psicanálise?
Não faz muitos anos que psicanalistas começaram a discursar sobre resiliência. Penso que isso começou fortemente na França e acabou caindo na América Latina, mas de maneira bem lenta. Inicialmente apenas como aportes teóricos, posteriormente surgiram interrogações da aplicação clínica do conceito na prática psicanalítica. Mas como diferenciar essa aplicação do tratamento realizado pela psicologia dos traumas vivenciados, principalmente do que se costumou chamar de estresse pós-traumático?
Possivelmente seja possível aportar a esse enlace entre resiliência e psicanálise alguns conceitos desta como sublimação, defesa, pulsão de morte, mas não se pode simplesmente jogar com eles, relacionando-os ingenuamente com o conceito de trauma e recuperação da teoria da resiliência, por exemplo.
- Pensando no que Freud escreveu desde seus textos pré-psicanalíticos sobre a relação entre o físico e o psíquico, que pode ser de contiguidade, mas também de oposição, de troca de cargas entre si, equilibrando esses dois lugares, ou de um sobrecarregando o outro, causando sintomas físicos e psíquicos;
- Pensando que primeiramente Freud idealizou o trauma como sexual, e reconhecendo depois que ele ocorre no nível da fantasia, mas, mesmo sendo fantasiado, tendo poder de criar imagens com a mesma potência da imagens reais;
- Pensando, assim, que o trauma pode vir tanto do exterior, com a impossibilidade de se lidar com questões sociais, culturais, econômicas e outras, quanto do interior, com o transbordamento de pensamentos e desejos que tornam impossível ao sujeito lidar com essas ideias, de poder verbalizá-las e simbolizá-las de forma a suportá-las e não adoecer,
Pode-se estabelecer a partir disso uma relação entre o conceito de resiliência para algumas abordagens teóricas como psicologia, sociologia, e a abordagem que a psicanálise realiza desse conceito. Algumas abordagens colocam mais ênfase nos fatores que vem do exterior e outra com mais ênfase nos fatores internos.
A psicanálise trabalha mais a questão inconsciente em relação a situações traumáticas, em que seria possível entender o trauma como uma escolha fantasiosa (imagens mentais com impacto de realidade) sobre desejos e representações que se fizeram peso inscritível, não simbolizáveis, com todas as consequências psíquicas e físicas de não se encontrar sentido para coisas que estão para além da compreensão. Essa posição do sujeito de emudecimento (das palavras e dos desejos) se assemelha a uma situação de morte, como uma invasão na percepção de algo que se irrompe não se sabe de onde e que não encontra significação no mundo desse sujeito, deprimindo-o, mortificando-o, isolando-o do mundo.
Como então sair desse Real do trauma, do encontro com a Coisa e voltar a discursar sobre fatos acontecidos e sobrecarregados de afetos e de desejos e ideias que forçam sua irrupção na consciência do sujeito? Falando a respeito para alguém que possa escutar atentamente esse discurso e realizar pontuações, escanções e interpretações que possam ressignificar essas ideias, esses afetos, e possibilitem que o sujeito possa lidar de uma forma mais responsável (no sentido de se responsabilizar por essas situações) com essas suas coisas e consiga diminuir o sofrimento que elas provocam. O psicanalista, dentro dessa compreensão, consegue ter essa escuta, pois sua teoria e técnica permitem ao sujeito se reposicionar sobre as causas de seu sofrimento e poder mudar o foco sobre elas.
Mas seria isso tornar um sujeito resiliente?
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SITUAÇÃO TRAUMÁTICA E
RESILIÊNCIA
Para alguns estudiosos da
resiliência, o trauma ocorre quando é superada a capacidade de se lidar
emocional e cognitivamente com um fato ocorrido, levando a pessoa a uma
sensação de impotência e a transtornos físicos e psíquicos
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TEORIA
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PSICOLOGIA
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PSICANÁLISE
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Origem do trauma
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Situações que afetam a pessoa em algum momento da
vida, como perda de alguém querido, doenças, perda financeira, acidentes,
etc, levando a pessoa a ter transtorno pós traumático, sintoma que está
ligado diretamente à situação ocorrida. Essa situação não é esquecida, está
disponível à consciência e isso tem peso no sintoma.
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O trauma é causado por uma cena, geralmente sexual,
vivida pela pessoa na infância e dentro de sua família ou muito próxima dela
(relação com o complexo de édipo). O efeito do trauma são as neuroses
(sintoma) e suas causas são inconscientes. Os sintomas que são efeitos dessa
cena traumática aparecem na fase adulta, ou seja, a posteriori, e são eles
que estão disponíveis à consciência
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Tratamento
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Paciente fala da cena traumática, que é o fato
acontecido, para obter compreensão (cognitivo) sobre ele e buscar sua
superação
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Paciente fala de tudo que esteja relacionado ao
sintoma (recordar e elaborar), com o objetivo de encontrar um enlace entre
ele e a cena traumática inconsciente que é sua causadora, encontrando um
sentido para o que lhe acomete.
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Resiliência
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Quando a pessoa supera o trauma e volta a estar como
estava antes dele, ou até melhor do que se encontrava, diz-se que ela
adquiriu resiliência, diretamente ligada a essa superação. É uma forma de
aprendizagem para lidar com futuras situações traumáticas
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A psicanálise ainda reflete pouco sobre a questão da
resiliência. Talvez o sentido adquirido ao desrecalque da cena traumática
permita à pessoa lidar melhor com os sintomas que forem aparecendo ao longo
de sua vida, mas nada garante que esses sintomas não façam parte de sua
existência e que ela mude apenas a maneira de lidar com eles.
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