Arquivo do blog

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

QUAL É A DA PSICANÁLISE COM A QUESTÃO SOCIAL?


 1-O atendimento psicanalítico geralmente é realizado num consultório fechado, de forma individualizada. O paciente é convidado a falar livremente de suas questões, seu sofrimento psíquico, seus transtornos. O psicanalista escuta o que paciente tem a dizer, mas não foca somente no que pode ser causado por ele mesmo a partir de suas decisões e ações, mas também pelo seu entorno social, pelo tipo de sociedade em que ele vive e que o afeta diretamente nas queixas que ele traz para o profissional.

2-Freud afirmou em seu texto Psicologia das Massas e Análise do Eu que “...a psicologia individual também é ao mesmo tempo psicologia social”. Antenado com essa teoria e prática, o profissional deve estar atento a como o paciente interage com o social que o cerca (família, escola, trabalho, política, cultura, etc) e como, a partir dessa interação, vai se transformando e também pode transformar a sua comunidade mais próxima ou de forma mais ampla. Dependendo da forma como ocorre essa interação, ele pode adoecer com menos ou mais facilidade e pode também enfrentar com menor ou maior difuculdade as causas socais de seu adoecimento.

3-A psicanálise se posiciona frente ao que acontece na sociedade, colocando seus pontos de vista sobre diversos temas que podem afetar a saúde mental do ser humano. Mesmo havendo psicanalistas que apresentam posicionamentos políticos considerados mais “à direita”, a grande maioria desses profissionais se posiciona à “esquerda”, entendendo que dessa forma conseguem defender de maneira mais categórica e qualificada os direitos da população, inclusive quanto ao aspecto da saúde mental.

4-Se há uma política da psicanálise, que é a adesão do psicanalista à doutrina freudiana, assim como sua defesa, pode-se considerar também que há uma psicanálise política, tanto no consultório com o paciente, enlaçando subjetividade com sociedade, assim como a psicanálise enquanto instituição posicionada socialmente e ainda como psicanalista cidadão do mundo, posicionando-se social e politicamente.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Quando o pai real faz o corte


O personagem Quinn, da série The White lotus, parece ter sido diagnosticado com síndrome de aspenger, algo que sua mãe nega, agora com 16 anos de idade, mas que o ator, mesmo assim, parece dar ao personagem traços dessa síndrome, apontando principalmente para seu ensimesmamento. Esse voltar para dentro de si mesmo o deixa ligado a latusas (gadgets), como um tablet e um celular, em que ele joga, assiste a filmes pornôs, sem, no entanto, apontar para laços sociais à distância. Ligado a esses aparelhos criados pela ciência, comprados por sua mãe capitalista num passe de mágica, e apresentados como possibilidade de curar sua falta, ele não precisaria ter contato com o mundo.

A relação com o pai é boa, mas ele parece ver neste uma figura enfraquecida, dominado pela esposa, sem apresentar a possibilidade de doação do falo (num dos diálogos, ele pergunta se o pai estaria aborrecido por fazer menos dinheiro que sua mãe). No entanto, algo desse pai, talvez sua figura real, pode fazer corte em Quinn, afeminando-o um tanto (Quinn tem a mesma sonoridade que queen), mas livrando-o da psicose (autismo), sem deixar de colocá-lo dentro de uma neurose grave.

Mergulhar com o pai, enxergar bichos abaixo da superfície do mar lhe dá nova perspectiva: ao mesmo tempo em que ainda se sente mergulhado no corpo da mãe, o pai tem alguma presença ali para fazer corte. Mas somente quando Quinn encontra outros homens que consegue enfrentar o mar-mãe de uma forma mais violenta (remar o bote mar a dentro) e convidam o garoto para participar desse processo (remar com eles, substituindo outro homem que, aparentemente mais fraco, foi deixado para trás pelo grupo) é que ele consegue criar verdadeiro laço social, deixando as latusas para trás e podendo reivindicar sua liberdade para fazer seu próprio caminho rumo à fase adulta, deixando de buscar o gozo fálico ou o gozo do Outro para cair no gozo da vida.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Lacan, sobre a cadeia significante no inconsciente

 


Seminário 6, O desejo e sua interpretação, 1960, p. 62: É claro que vocês já veem, não aonde quero chegar, mas aonde chegaremos necessariamente. Embora Freud em sua época se encontrasse numa situação em que as coisas podiam ser ditas num discurso científico, esse Vorstellungsrepresentänz, vocês já devem estar percebendo, equivale estritamente à noção e ao termo de "significante".

Nesse ponto de seu percurso, o significante seria comparado por Lacan ao representante da representação em Freud, ao que do inconsciente (recalque primário) consegue escapar por algo que não é a coisa mesma recalcada, mas que faz seu retorno de modo representado, ludibriando a censura e dando as caras na consciência.

Subversão do sujeito e dialética do desejo, Escritos,   p. 813: O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e na cogitação a que ele dá forma. Idem, p. 831: ...Eis agora, com efeito, nossa atenção solicitada pelo status subjetivo da cadeia significante no inconsciente, ou melhor, no recalque primário (Urverdrängung).

Em 1960 Lacan localiza, como ensaio, no texto de Freud uma cadeia significante no inconsciente e que aparece no discurso do sujeito, em seus lapsos e buracos. Essa cadeia significante insiste e se repete a partir do recalque primário.

Seminário 21, Os não-tolos erram / Os nomes do pai, aula 13/12/1973: Ainda que eu tenha dito, em alguma parte de minhas garatujas, as primeiras, Função e Campo, isso não era, lá, tão estup...Disse em Função e Campo que formavam cadeia. É um erro, porque para decifrar, foi preciso que eu fizesse algumas tentativas, daí essa estupidez.

Não encontrei a passagem em Função e Campo e sim em A subversão do sujeito. No seminário 21, nesse trecho, afirma que a linguagem não é saber e sim efeito da relação entre S1 e S2. O saber seria a consequência de que não há um Outro, em que S2 não se relacionaria com S1, não formando uma cadeia. A partir disso, nega as afirmações do texto de 1960 de que haveria uma cadeia significante no inconsciente. Estaria colocando aí que haveria um saber inconsciente, formado apenas por um enxame de S1? Como S1 de lalíngua, em que se pode afirmar que há o Um, mas que não há Outro, o que também poderia fundamentar a impossibilidade de se inscrever a proporção sexual.

Segundo Harari, em seu livro Por que não há relação sexual?, Lacan pode fazer essa objeção à afirmação de 1960 em função da clínica que desenvolve a partir da lógica borromeana, que lhe permite conceber um tipo de relação diferente daquela da cadeia significante. A clínica borromeana pediria a independência mútua de dois elos iniciais, indicando uma autonomia do material do significante. 

 

domingo, 11 de agosto de 2024

A aletosfera das latusas


No seminário 17, aula 11, denominada por Miller “os sulcos da aletosfera”, Lacan afirma que nada se sabe do objeto a, e é como falta a ser que ele se manifesta no ser vivente, no que ele viria a chamar de falasser.

Mais à frente na mesma aula aponta que à medida em que o campo (do saber?) se estende pelo fato de a ciência desempenhar, talvez, a função do discurso do mestre, não sabemos em que grau cada um de nós é determinado primeiro como objeto a. Que se constrói uma ciência que nada mais tem a ver com os pressupostos que desde sempre a ideia de conhecimento implicava, isso tendo mudado pelo simples jogo de uma verdade formalizada ou de uma verdade puramente lógica da ciência atual.

Nesse ambiente que tem relação com a ciência moderna, com as consequências da verdade formalizada, Lacan indica que deve haver algum lugar onde estamos incluídos sem saber até agora e não operando com isso (objetos a ou semblantes dele). Lembremos que em 1970 (ano do seminário 17), época do avanço da conquista do espaço, muitos objetos já estavam circulando na estratosfera ou noosfera, daí ele proclamar essa aletosfera.

Aletosfera: de Aletéia (em grego clássico: ἀλήθεια; romaniz.: Alétheia; lit. verdade, no sentido de desvelamento: de a-, negação; e lethe, "esquecimento"), para os antigos gregos, designava a verdade e a realidade, simultaneamente; verdade sendo a manifestação daquilo que é ou existe tal como é.

Aletosfera (esfera, lugar da verdade) é onde se vai alojar tudo aquilo que está em relação com a verdade formalizada da ciência. Nossos movimentos estão em relação às verdades que podem ser deduzidas, formalizadas a partir do avanço da ciência. Nesse caso, o real da verdade formalizada.

Nesse mesmo seminário Lacan fala das latusas (lathouse), igualando-as e diferenciando-as dos objetos a. Elas são objetos fabricados com relação a essas verdades que se desprendem da ciência, são os produtos que na aletosfera existem como objetos a, são objetos não viventes, fabricados, mas que existem na aletosfera. As latusas não são objetos a, mas podem estar como tal, objetos fabricados no interior do mal-estar da cultura que podem funcionar no nível da causa, por fora do sujeito.

Como objetos fabricados, produtos do discurso científico, as latusas sustentam certo nível de ocultamento da verdade, assim como o objeto a permite o mesmo efeito (por exemplo, no lugar da verdade no discurso histérico pode estar tanto o objeto a quanto uma latusa no ocultamente de seu desejo).

Se a latusa funciona como causa, resulta que o lugar da verdade não é uma materialidade, porque a latusa é resultado de um desenvolvimento de uma verdade formalizada, mesmo que seja em si material; por isso essa causa nunca passa a ser material quanto a latusa, ficando somente no nível formal. Assim, nas latusas não há efeito de linguagem (exceto a que está em relação a uma verdade formalizada) e não há a possiblidade de fazerem semblante e interrogarem o sujeito através de sua causa material.

O mundo está cada vez mais povoado de latusas, como objetos da promessa do discurso capitalista como S1. Essa substituição maníaca do objeto, promovida pelo discurso do capitalista, buscaria afastar a angústia da falta a ser, assim como o luto gostaria de superar a angústia traumática decorrente da perda.

E quanto aos pequenos objetos a que se encontra imajados em todas as telas de que dispomos (eles mesmos como se objetos a), atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de todos, na medida em que agora é a ciência que os governa, podemos pensar neles como latusas (ou mais recentemente como “gadgets” ou “gismos”). Esses produtos existem para tapar a boca com relação a algo que não possa ser dito (sobre a falta?).

O analista se encontra com pacientes confrontados com suas latusas, como aquele viciado em jogos eletrônicos pelo celular que prolonga seus olhos, ou por uma motocicleta que quase faz simbiose com seu corpo, ou em uma arma que prolonga o braço do indivíduo. Todos eles podem momentaneamente trazer satisfação, mas sempre apontam para a falta com o que eles têm de se confrontar.

Na última parte de seu texto A Terceira Lacan afirma que a ciência nos dá alguma coisa para colocar no lugar do que nos falta na relação, na relação do conhecimento, coisas que se reduzem a engenhocas (mais um nome para latusas), dando como exemplo a televisão e a viagem à lua. E que o futuro da psicanálise dependeria do que adviria desse real, da vantagem que essas engenhocas ganhassem, no sentido de sermos nós mesmos animados (anima, psiquê) por elas. E que ter uma delas já era para ele um sintoma.

Questões a serem pensadas: a posição do analista como a, como causa do desejo, coincidiria com a latusa? Um analista IA, totalmente eletrônico, estaria no lugar da latusa? O analista estaria na aletosfera, como uma fábrica de analistas?

Texto baseado em partes do livro de Norberto Ferreyra, El outro insomnio: deuda y antecedência en psicoanálisis, Ediciones Kliné, Buenos Aires, 1993.

 

domingo, 14 de julho de 2024

AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO


No seminário 10 Lacan trabalha graficamente a divisão subjetiva (figura abaixo), colocando miticamente na primeira linha o sujeito natural e o Outro não barrado. Penso que nessa linha se poderia localizar a Afirmação (Bejahung) freudiana e o que se afirmaria com ela seria a possibilidade de gozo (bolha narcísica criança-mãe). Contrapondo a essa Bejahung viria a Verneinung (negação) como corte, recalque primário, castração, o Nome do Pai funcionando como um não à mãe e à criança quanto a recuperar o falo ou se colocar na posição dele, respectivamente.
Tanto afirmação quanto negação nesse momento seriam processos lógicos que ocorrem ao mesmo tempo, mas também seriam míticos, funcionando como barramento tanto ao Sujeito quanto ao Outro (segunda linha do gráfico da divisão). E talvez isso levasse a uma nova afirmação que seria o fantasma (linha vertical do lado do A) e, dialeticamente, retomasse o processo anterior como tentativa de encontrar um objeto de desejo que satisfaça o gozo perdido com a castração sofrida (reencontro com o objeto em Freud) e a não possibilidade de qualquer objeto satisfazer a essa busca funcionando como nova negação...
Talvez um exemplo disso seja o que Freud aponta em seu texto a A Negativa (Die Verneinung, de 1925) em que o paciente, frente ao reconhecimento de que a mulher em seu sonho pudesse ser sua mãe (afirmação e presença da cena do gozo), nega essa possibilidade (negação frente ao medo da castração evocada pelo gozo) somente para reforçar que era realmente sua mãe (nova afirmação como desejo de reencontro com o objeto de gozo no fantasma).

terça-feira, 18 de junho de 2024

Quero meu quinhão!

 

Texto de Soler em Lacan, leitor de Joyce. No Aturdito Lacan já havia falado do não à função fálica como forma de escamotear a castração ( “não há universal que não deva ser contido por uma existência que o negue” (1973, p. 450).  Negar o universal   pela particular   não leva a uma verdade, mas somente a uma ficção da existência da relação sexual. Mas esse negar a não existência da relação sexual negando a função fálica seria uma estratégia do neurótico para se continuar no discurso. Na clínica, quando o analisante reclama que não tem nada na vida, que ninguém o ama, que só outros conseguem (gozam) e que ele também mereceria tudo de bom, supor um outro não castrado é uma forma de manter-se em seu dito e apontar para o dizer e se sustentar como sujeito de desejo. Nesse sentido, parece momentaneamente uma ação válida, mas que, com ajuda do analista, deve levá-lo para a assunção de sua falta, a transformar a impotência em impossibilidade, a se servir da função fálica e a inventar com seu sintoma

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Jeanne Dielman


O filme Jeanne Dielman, dirigido por Chantal Akerman, é uma produção franco-belga de 1975. O título completo é Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles, que mostra não somente o endereço onde moram os dois personagens principais, mãe e filho, mas também carrega outro sentido, apontado pela palavra “truques” na descrição do roteiro feito pelo site Filmicca: “Três dias na vida de uma mulher, uma dona de casa viúva e solitária, cujas tarefas incluem arrumar as camas, preparar o jantar para seu filho adolescente e alguns truques para sobreviver. Lentamente, sua ritualizada rotina diária começa a desmoronar”.

O site tem razão, pois são três horas e vinte minutos descrevendo a rotina de Jeanne e seu filho Sylvain, com cenas praticamente completas dela cuidando da casa, fazendo compras de comida, preparando o jantar, apresentando uma monotonia que pode irritar ou desconcertar a quem assiste ao filme. No entanto, o site supõe que essa rotina começa a desmoronar lentamente, e talvez o espectador espere por isso, mas nada indica, a não ser nos minutos finais, que alguma coisa precisa ser rompida, cortada; nada aponta para a necessidade de que aquela relação, aquela rotina precise ser mudada, que aquela situação seria insuportável para os dois. Nesse sentido, nada de fora parece inter-ferir naquela diacronia permeada por símbolos reduzidos, quase nulos, nenhuma sincronia que redirecione o desejo de mãe e filho e de forma separada. Se algo da ordem da tichê se faz necessário para desestabilizar esse autômaton, seria uma expectativa nossa e não dos personagens.

Mesmo assim, vale colocar em evidência algumas situações, talvez incômodas, que indiquem a necessidade de mudança na relação entre mãe e filho, pois temos noção de até onde esse tipo de relação pode levar (indico mais dois filmes sobre esse tipo de ligação mãe-filho, em que no primeiro [Amor de Urso, Dinamarca, 2012] há uma separação possível entre os dois, e um segundo [Minha Mãe, França, 2004], em que a tragédia prevista se fez presente entre os dois por não ter havido corte possível).

O primeiro incômodo é que Sylvain é um adolescente no filme, porém, não parece como tal e a diretora, talvez de forma proposital, escolheu um ator de 25 anos para fazer esse papel. Então vemos essa mãe cuidando desse filho adolescente-adulto como se fosse uma criança (pedindo para se lavar, preparando sua comida sem que ele levante um dedo, todo dia engraxando seus sapatos, dobrando sua roupa de dormir), infantilizando-o a tal ponto que, a não ser por seus estudos, aparenta nada conseguir fazer sozinho. O segundo incômodo é o silêncio entre os dois: pouco falam entre si e esse pouco mostra ser uma repetição dos mesmos diálogos, o filho pouco tem a contar à mãe e a mãe não pode ou não quer contar tudo ao filho. Em uma das cenas ele conta algo de um colega da escola, mas conta de forma automática, como se estivesse lendo um livro (o tema era sexual, mas isso não parecia afetá-lo, apesar da mãe pedir que ele não falasse termos relacionados a isso).

Outras duas cenas que poderiam apontar para algo inevitável que poderia estar se aproximando é quando ela leva um par de sapatos do filho para o sapateiro consertar, pois ele estava furado; e quando sai à procura de um botão para um velho casaco que estava guardado por ser grande e que agora serviria para Sylvain usar. Elas apontam para o crescimento do filho, mas também para os buracos que precisam ser preenchidos para que o filho possa caminhar e sair para o exterior. Mas o que exatamente se aproxima? Uma possível separação entre os dois?

Da repetição dos diálogos vale destacar que aparentemente toda noite, na hora do jantar, a mãe pede para o filho não ler à mesa. Ele parece ler justamente para esperar esse pedido dela. Ou então, toda vez que ele vai tomar o café da manhã, ela pergunta se ele havia lavado as mãos. Interessante notar que o café da manhã sempre se passa na cozinha e o jantar na mesa na sala, como se a alternância entre esses dois espaços quebrasse um pouco a rotina. Notar ainda que sobre a mesa do jantar, dentro de um vaso, se encontra o resultado dos truques da mãe, segredo sempre acessível ao filho se ele quisesse saber de algo sobre ela.

Algo ele quer saber e aparentemente já perguntara várias vezes a ela, sobre como conhecera seu pai. Ela repete que casou sem amor, com um homem qualquer, pois seu grande sonho era ter um filho. Enquanto ela reconta essa história, ele não tira o olho do livro que estava lendo. Diz que quando conheceu o marido não sabia se queria se casar, mas todos diziam que isso era o certo a se fazer. Mas ela tinha dúvidas. O que queria era um lugar seu e um filho. Depois que o comércio do pretendido faliu, ela decidiu-se pelo casamento, apesar de receber críticas das mesmas pessoas que a incentivavam antes, quando o marido ainda tinha dinheiro. Por que ela mudou de ideia depois que ele empobreceu?

Na mesma cena o filho perguntou como seria dormir com ele, já que era feio. Ela responde que dormir com ele era só um detalhe (assim como seria um detalhe fazer o que fazia em seus ‘truques’?). “E eu tinha a ti e ele não era tão feio”. O filho reconhece que ela não amava seu pai e diz que se fosse mulher só se casaria com alguém que amasse. Em uma cena na rua, perguntada sobre como seu filho estava, responde que ele estava bem, acrescentando que ele era a única coisa que quis e não poderia viver sem ele.

Ainda na relação de cuidar do filho, ela tricota lentamente um casaco para ele, o que também aponta para a repetição: sempre depois que terminam o jantar, ele vai sempre para uma poltrona, ela sempre liga o rádio e pega sempre a caixa do tricô. Em uma vez em que ela não liga o rádio, ele pergunta se ela não iria ligar, como se a rotina tivesse que ser mantida. Em outro momento ela o chama da poltrona para experimentar o casaco e pergunta se ele o quer mais largo e ele responde que sim, o que mostra para seu crescimento corporal e, na verdade, que ele já é bastante grande para ser um adolescente. Essa blusa que poderia sair apertada pode se ligar a outra cena em que ele, saindo para ir à escola, tem (sempre?) sua mãe a apertar o cachecol em torno do seu pescoço. E de apertos em apertos eles vão se sufocando.

Em uma das cenas a mãe lê (quase que de forma automática, sem respeitar as pontuações – da mesma maneira como o filho contou o fato da escola) uma carta de sua irmã que mora no Canadá, pela qual os convida a passar um tempo com ela. Isso aponta para algo que chama do exterior para tirá-los da rotina. A isso se soma a sugestão da irmã de que Jeanne volte a se casar, depois de seis anos da morte do marido, ou seja, que coloque seu desejo em outro lugar e deixe o filho livre. Esse ato de liberdade seria não querer ou não mais precisar que o desejo do filho gire em torno do seu desejo. Pois ele responde às demandas dela como se seus desejos fossem.

Outra de suas rotinas é sair de casa à noite, aparentemente toda noite, mas a diretora optou por não deixar evidente para qual atividade poderiam ir. Nessa rotina repetitiva (ele sair de manhã para escola, terem todo dia batata no jantar, fazerem sempre mesma coisa juntos) há a marca de uma junção que aponta para a necessidade da disjunção, mas os personagens nada sabem disso. A diretora sabe, mas ela constrói a cena dessa separação somente nos minutos finais, de forma trágica, sem dar sentido ao gesto da mãe, sem apontar para suas motivações. No entanto, talvez haja algo de alívio ali, que aponte para um futuro em que viver separados seja mais saudável que a forma em que estavam vivendo juntos.

 

QUAL É A DA PSICANÁLISE COM A QUESTÃO SOCIAL?

  1-O atendimento psicanalítico geralmente é realizado num consultório fechado, de forma individualizada. O paciente é convidado a falar liv...