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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Jeanne Dielman


O filme Jeanne Dielman, dirigido por Chantal Akerman, é uma produção franco-belga de 1975. O título completo é Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles, que mostra não somente o endereço onde moram os dois personagens principais, mãe e filho, mas também carrega outro sentido, apontado pela palavra “truques” na descrição do roteiro feito pelo site Filmicca: “Três dias na vida de uma mulher, uma dona de casa viúva e solitária, cujas tarefas incluem arrumar as camas, preparar o jantar para seu filho adolescente e alguns truques para sobreviver. Lentamente, sua ritualizada rotina diária começa a desmoronar”.

O site tem razão, pois são três horas e vinte minutos descrevendo a rotina de Jeanne e seu filho Sylvain, com cenas praticamente completas dela cuidando da casa, fazendo compras de comida, preparando o jantar, apresentando uma monotonia que pode irritar ou desconcertar a quem assiste ao filme. No entanto, o site supõe que essa rotina começa a desmoronar lentamente, e talvez o espectador espere por isso, mas nada indica, a não ser nos minutos finais, que alguma coisa precisa ser rompida, cortada; nada aponta para a necessidade de que aquela relação, aquela rotina precise ser mudada, que aquela situação seria insuportável para os dois. Nesse sentido, nada de fora parece inter-ferir naquela diacronia permeada por símbolos reduzidos, quase nulos, nenhuma sincronia que redirecione o desejo de mãe e filho e de forma separada. Se algo da ordem da tichê se faz necessário para desestabilizar esse autômaton, seria uma expectativa nossa e não dos personagens.

Mesmo assim, vale colocar em evidência algumas situações, talvez incômodas, que indiquem a necessidade de mudança na relação entre mãe e filho, pois temos noção de até onde esse tipo de relação pode levar (indico mais dois filmes sobre esse tipo de ligação mãe-filho, em que no primeiro [Amor de Urso, Dinamarca, 2012] há uma separação possível entre os dois, e um segundo [Minha Mãe, França, 2004], em que a tragédia prevista se fez presente entre os dois por não ter havido corte possível).

O primeiro incômodo é que Sylvain é um adolescente no filme, porém, não parece como tal e a diretora, talvez de forma proposital, escolheu um ator de 25 anos para fazer esse papel. Então vemos essa mãe cuidando desse filho adolescente-adulto como se fosse uma criança (pedindo para se lavar, preparando sua comida sem que ele levante um dedo, todo dia engraxando seus sapatos, dobrando sua roupa de dormir), infantilizando-o a tal ponto que, a não ser por seus estudos, aparenta nada conseguir fazer sozinho. O segundo incômodo é o silêncio entre os dois: pouco falam entre si e esse pouco mostra ser uma repetição dos mesmos diálogos, o filho pouco tem a contar à mãe e a mãe não pode ou não quer contar tudo ao filho. Em uma das cenas ele conta algo de um colega da escola, mas conta de forma automática, como se estivesse lendo um livro (o tema era sexual, mas isso não parecia afetá-lo, apesar da mãe pedir que ele não falasse termos relacionados a isso).

Outras duas cenas que poderiam apontar para algo inevitável que poderia estar se aproximando é quando ela leva um par de sapatos do filho para o sapateiro consertar, pois ele estava furado; e quando sai à procura de um botão para um velho casaco que estava guardado por ser grande e que agora serviria para Sylvain usar. Elas apontam para o crescimento do filho, mas também para os buracos que precisam ser preenchidos para que o filho possa caminhar e sair para o exterior. Mas o que exatamente se aproxima? Uma possível separação entre os dois?

Da repetição dos diálogos vale destacar que aparentemente toda noite, na hora do jantar, a mãe pede para o filho não ler à mesa. Ele parece ler justamente para esperar esse pedido dela. Ou então, toda vez que ele vai tomar o café da manhã, ela pergunta se ele havia lavado as mãos. Interessante notar que o café da manhã sempre se passa na cozinha e o jantar na mesa na sala, como se a alternância entre esses dois espaços quebrasse um pouco a rotina. Notar ainda que sobre a mesa do jantar, dentro de um vaso, se encontra o resultado dos truques da mãe, segredo sempre acessível ao filho se ele quisesse saber de algo sobre ela.

Algo ele quer saber e aparentemente já perguntara várias vezes a ela, sobre como conhecera seu pai. Ela repete que casou sem amor, com um homem qualquer, pois seu grande sonho era ter um filho. Enquanto ela reconta essa história, ele não tira o olho do livro que estava lendo. Diz que quando conheceu o marido não sabia se queria se casar, mas todos diziam que isso era o certo a se fazer. Mas ela tinha dúvidas. O que queria era um lugar seu e um filho. Depois que o comércio do pretendido faliu, ela decidiu-se pelo casamento, apesar de receber críticas das mesmas pessoas que a incentivavam antes, quando o marido ainda tinha dinheiro. Por que ela mudou de ideia depois que ele empobreceu?

Na mesma cena o filho perguntou como seria dormir com ele, já que era feio. Ela responde que dormir com ele era só um detalhe (assim como seria um detalhe fazer o que fazia em seus ‘truques’?). “E eu tinha a ti e ele não era tão feio”. O filho reconhece que ela não amava seu pai e diz que se fosse mulher só se casaria com alguém que amasse. Em uma cena na rua, perguntada sobre como seu filho estava, responde que ele estava bem, acrescentando que ele era a única coisa que quis e não poderia viver sem ele.

Ainda na relação de cuidar do filho, ela tricota lentamente um casaco para ele, o que também aponta para a repetição: sempre depois que terminam o jantar, ele vai sempre para uma poltrona, ela sempre liga o rádio e pega sempre a caixa do tricô. Em uma vez em que ela não liga o rádio, ele pergunta se ela não iria ligar, como se a rotina tivesse que ser mantida. Em outro momento ela o chama da poltrona para experimentar o casaco e pergunta se ele o quer mais largo e ele responde que sim, o que mostra para seu crescimento corporal e, na verdade, que ele já é bastante grande para ser um adolescente. Essa blusa que poderia sair apertada pode se ligar a outra cena em que ele, saindo para ir à escola, tem (sempre?) sua mãe a apertar o cachecol em torno do seu pescoço. E de apertos em apertos eles vão se sufocando.

Em uma das cenas a mãe lê (quase que de forma automática, sem respeitar as pontuações – da mesma maneira como o filho contou o fato da escola) uma carta de sua irmã que mora no Canadá, pela qual os convida a passar um tempo com ela. Isso aponta para algo que chama do exterior para tirá-los da rotina. A isso se soma a sugestão da irmã de que Jeanne volte a se casar, depois de seis anos da morte do marido, ou seja, que coloque seu desejo em outro lugar e deixe o filho livre. Esse ato de liberdade seria não querer ou não mais precisar que o desejo do filho gire em torno do seu desejo. Pois ele responde às demandas dela como se seus desejos fossem.

Outra de suas rotinas é sair de casa à noite, aparentemente toda noite, mas a diretora optou por não deixar evidente para qual atividade poderiam ir. Nessa rotina repetitiva (ele sair de manhã para escola, terem todo dia batata no jantar, fazerem sempre mesma coisa juntos) há a marca de uma junção que aponta para a necessidade da disjunção, mas os personagens nada sabem disso. A diretora sabe, mas ela constrói a cena dessa separação somente nos minutos finais, de forma trágica, sem dar sentido ao gesto da mãe, sem apontar para suas motivações. No entanto, talvez haja algo de alívio ali, que aponte para um futuro em que viver separados seja mais saudável que a forma em que estavam vivendo juntos.

 

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