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domingo, 11 de agosto de 2024

A aletosfera das latusas


No seminário 17, aula 11, denominada por Miller “os sulcos da aletosfera”, Lacan afirma que nada se sabe do objeto a, e é como falta a ser que ele se manifesta no ser vivente, no que ele viria a chamar de falasser.

Mais à frente na mesma aula aponta que à medida em que o campo (do saber?) se estende pelo fato de a ciência desempenhar, talvez, a função do discurso do mestre, não sabemos em que grau cada um de nós é determinado primeiro como objeto a. Que se constrói uma ciência que nada mais tem a ver com os pressupostos que desde sempre a ideia de conhecimento implicava, isso tendo mudado pelo simples jogo de uma verdade formalizada ou de uma verdade puramente lógica da ciência atual.

Nesse ambiente que tem relação com a ciência moderna, com as consequências da verdade formalizada, Lacan indica que deve haver algum lugar onde estamos incluídos sem saber até agora e não operando com isso (objetos a ou semblantes dele). Lembremos que em 1970 (ano do seminário 17), época do avanço da conquista do espaço, muitos objetos já estavam circulando na estratosfera ou noosfera, daí ele proclamar essa aletosfera.

Aletosfera: de Aletéia (em grego clássico: ἀλήθεια; romaniz.: Alétheia; lit. verdade, no sentido de desvelamento: de a-, negação; e lethe, "esquecimento"), para os antigos gregos, designava a verdade e a realidade, simultaneamente; verdade sendo a manifestação daquilo que é ou existe tal como é.

Aletosfera (esfera, lugar da verdade) é onde se vai alojar tudo aquilo que está em relação com a verdade formalizada da ciência. Nossos movimentos estão em relação às verdades que podem ser deduzidas, formalizadas a partir do avanço da ciência. Nesse caso, o real da verdade formalizada.

Nesse mesmo seminário Lacan fala das latusas (lathouse), igualando-as e diferenciando-as dos objetos a. Elas são objetos fabricados com relação a essas verdades que se desprendem da ciência, são os produtos que na aletosfera existem como objetos a, são objetos não viventes, fabricados, mas que existem na aletosfera. As latusas não são objetos a, mas podem estar como tal, objetos fabricados no interior do mal-estar da cultura que podem funcionar no nível da causa, por fora do sujeito.

Como objetos fabricados, produtos do discurso científico, as latusas sustentam certo nível de ocultamento da verdade, assim como o objeto a permite o mesmo efeito (por exemplo, no lugar da verdade no discurso histérico pode estar tanto o objeto a quanto uma latusa no ocultamente de seu desejo).

Se a latusa funciona como causa, resulta que o lugar da verdade não é uma materialidade, porque a latusa é resultado de um desenvolvimento de uma verdade formalizada, mesmo que seja em si material; por isso essa causa nunca passa a ser material quanto a latusa, ficando somente no nível formal. Assim, nas latusas não há efeito de linguagem (exceto a que está em relação a uma verdade formalizada) e não há a possiblidade de fazerem semblante e interrogarem o sujeito através de sua causa material.

O mundo está cada vez mais povoado de latusas, como objetos da promessa do discurso capitalista como S1. Essa substituição maníaca do objeto, promovida pelo discurso do capitalista, buscaria afastar a angústia da falta a ser, assim como o luto gostaria de superar a angústia traumática decorrente da perda.

E quanto aos pequenos objetos a que se encontra imajados em todas as telas de que dispomos (eles mesmos como se objetos a), atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de todos, na medida em que agora é a ciência que os governa, podemos pensar neles como latusas (ou mais recentemente como “gadgets” ou “gismos”). Esses produtos existem para tapar a boca com relação a algo que não possa ser dito (sobre a falta?).

O analista se encontra com pacientes confrontados com suas latusas, como aquele viciado em jogos eletrônicos pelo celular que prolonga seus olhos, ou por uma motocicleta que quase faz simbiose com seu corpo, ou em uma arma que prolonga o braço do indivíduo. Todos eles podem momentaneamente trazer satisfação, mas sempre apontam para a falta com o que eles têm de se confrontar.

Na última parte de seu texto A Terceira Lacan afirma que a ciência nos dá alguma coisa para colocar no lugar do que nos falta na relação, na relação do conhecimento, coisas que se reduzem a engenhocas (mais um nome para latusas), dando como exemplo a televisão e a viagem à lua. E que o futuro da psicanálise dependeria do que adviria desse real, da vantagem que essas engenhocas ganhassem, no sentido de sermos nós mesmos animados (anima, psiquê) por elas. E que ter uma delas já era para ele um sintoma.

Questões a serem pensadas: a posição do analista como a, como causa do desejo, coincidiria com a latusa? Um analista IA, totalmente eletrônico, estaria no lugar da latusa? O analista estaria na aletosfera, como uma fábrica de analistas?

Texto baseado em partes do livro de Norberto Ferreyra, El outro insomnio: deuda y antecedência en psicoanálisis, Ediciones Kliné, Buenos Aires, 1993.

 

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