A notícia apareceu em um jornal do ABC Paulista, na década de
90, com o seguinte título: “Rapaz mata irmão de mesmo nome por ciúme”. Contava
a seguinte história: homem, desempregado, 31 anos de idade, mata o irmão,
motorista, com 37 anos, de mesmo nome. Motivos: primeiro, porque suspeitava que
ele tivesse tido um caso amoroso com sua ex-esposa; suspeita que prosseguiu
quando foi abandonado por ela, seis meses antes do crime (se o irmão realmente
tivesse tido um caso com ela, este já teria terminado, justamente na época em
que ela partiu). Segundo motivo: o irmão mais novo havia vendido sua parte da
casa em que moravam para esse irmão; tempos depois mudou de ideia, querendo
desfazer o negócio, o que não foi aceito. Segundo a pessoa que alegou esses
motivos (a viúva), o irmão menor também sentia muita inveja do maior, pois
percebia que o outro era trabalhador e conseguia muito mais que ele, que
dificilmente parava em um mesmo emprego, não tendo mais a parte do imóvel, não
tendo mais nem mesmo sua ex-esposa. Mais: o desentendimento entre os dois vinha
ocorrendo já há dois anos, sendo que moravam na mesma casa havia sete anos. Por
fim, a informação que foi dada ao jornalista é que os dois tinham o mesmo nome
por uma promessa da mãe, que não foi esclarecida qual teria sido. Depois de
assassinar o irmão maior, o menor fugiu, sendo preso alguns dias depois na casa
de sua atual companheira, sem resistir à prisão, confessando o crime, motivado
por ciúmes, segundo ele.
Poderíamos pensar essa atitude extrema do “rapaz” citado no
texto partindo dessa questão assinalada, a de que sentia ao mesmo tempo ciúme e
inveja do irmão. Talvez não dê mesmo para dissociar esses dois sentimentos, já
que parecem ser faces de uma mesma moeda, onde está em pleno a questão da
identificação e do narcisismo.
Sabemos em que momento tem início essa questão imaginária que
opõe um eu a um semelhante, quando, forçado muitas vezes a reconhecer-se nesse
outro, o eu cuida para que não seja destruído por seu semelhante. “O ciúme nasce em um sujeito em sua relação a
um outro, esse outro participando de um gozo, a que o sujeito não pode
apreender por nenhum tipo de ação... isso pode levar a que se destrua esse
outro...” (Lacan, Seminário A ética da psicanálise). O momento em que tem
início toda questão imaginária para o eu é o do estádio do espelho, momento de
reconhecimento de sua imagem especular, onde precisa alienar-se para mais tarde
diferenciar-se de um não-eu, acedendo assim a seu narcisismo, e, via seu acesso
ao discurso, poder colocar em jogo seu próprio desejo.
A presença do semelhante é imprescindível para o
reconhecimento desse eu, para sentir-se no mundo, para viver em sociedade. O
ciúme pode também ser imprescindível para essa circulação, pois nele está a
gênese do social, de um poder estar aí com os outros.
O instante em que se pode situar aí a inveja é justamente no
primeiro movimento do estádio, o momento em que a criança olha sua imagem no
espelho, de um ser completo, que vem marcar o esfacelamento de seu próprio
corpo. Nesse movimento de ida o semelhante é peça essencial para que possa
haver o retorno desse olhar que é enviado àquela imagem: o ver-se visto é
necessário para que o circuito se complete e nessa volta possa haver a
constituição do sujeito. Esse segundo movimento é a possibilidade do
aparecimento do narcisismo, girando justamente em função desse semelhante, de
onde surgirão os ciúmes fraternos, gênese de toda agressividade possível. Diz
Castro (La envidia y la neuroses obsessiva) que invejoso e invejado se situam
como mesmo sujeito dividido: o outro sendo sua imagem, seria o conflito do
sujeito consigo mesmo.
Inicialmente a imagem do outro provoca no sujeito posturas
similares, que o leva a não se distinguir dessa imagem; posteriormente ocorre
uma intrusão narcísica pela presença do semelhante, que contribuirá para a
formação do eu. “Mas, antes que o eu afirme sua identidade, ele se confunde com
essa imagem que o forma, que o aliena primordialmente” (Lacan, Os complexos
familiares). Vemos que na inveja há toda a questão do olhar (Santo Agostinho
cita o olhar feroz de uma criança observando seu irmão menor pendurado no peito
de sua mãe), do ver-se e ser visto. E aqui temos duas afirmações: a inveja não
é pulsão escópica, o olhar do invejoso carrega outro sentido; a inveja é puro
olhar sem correspondência. Não é pulsão escópica porque na inveja não entra a
sexualidade em jogo, há queda da sexualidade na inveja. Se a pulsão se
constitui justamente no momento do retorno do seu circuito, no movimento de
retorno do olhar, juntamente com a formação do sujeito, na inveja, segundo a
outra afirmação, essa segunda parte do movimento não se completa, é paralisada
no ver-se, não há um retorno do olhar, aquele que vê não se sente visto. Sem
segundo movimento, sem fechamento do circuito, sem formação da pulsão, sem
sexualidade.
Sem esse retorno do olhar do semelhante (possibilidade de
ver-se visto), o olhar do invejoso fica preso a essa imagem onde fixou seu
desejo, sem possibilidade de um retorno necessário. Necessário porque, ficando
preso a esse desejo do outro, não pode aceder a seu próprio desejo, sexualizar-se.
Bastaria então um olhar vindo desse outro, indicando sua potência, para que o
eu se despregue daquilo que o fascina, possibilitando sua constituição e
diferenciação do não-eu.
O que prende o olhar no outro, o que fascina é essa imagem de
completude que se vê e que marca a incompletude do sujeito. É a partir do Outro
que se pode ficar preso a essa imagem ou poder desligar-se dela e investir em
outros objetos. Mas é também por essa própria potência que se pode chegar a
imaginar que outro tem o que se pode permitir o gozo, algo que também se quer
ter o acesso. A inveja é o que caracteriza essa passividade da fascinação, a
prisão em uma imagem idealizada onde se supõe uma totalidade que lhe falta e
que poderia levar o sujeito ao gozo do ser pelo ter (o objeto que supõe o outro
poder gozar). Mas, se aparentemente é o objeto que o outro possui o que parece
atrair pelo fascínio o olhar do invejoso, esse objeto é o que menos importa,
pois o mais essencial é o interesse pela imagem do rival, que porta esse objeto
que se supõe ser o do gozo.
Inicialmente há uma igualdade entre investimento e
narcisismo, o objeto dos dois sendo o mesmo. Mas é no narcisismo onde ocorre a
possibilidade da produção da constituição do eu frente a uma posição eóica, o
que definitivamente cria as condições materiais da possibilidade do
aparecimento do sujeito. Para Cabas (Curso e discurso na obra de Jacques Lacan),
a identificação conduz à discriminação eu/não-eu, o que supõe que o infans tem
que metabolizar certos atributos que lhes são estranhos e que vem do outro,
onde se localiza uma estrutura alheia, como uma instância de alteridade
instalada no próprio sujeito. Ainda: a identificação, ao ocupar o objeto,
incorpora os valores negativos que lhe ficaram associados como efeito da
experiência de frustração. Identificação causa clivagem no sujeito, ao situar o
eu e o não-eu, mas o eu ainda mantendo ligações com esse não-eu.
“A identificação significa que a coisa com o qual o eu se
identifica é a causa desse eu; ou seja, o papel ativo anteriormente
desempenhado pelo eu é, no momento, garantido pelo objeto” (Nasio, Os 7
conceitos cruciais da psicanálise). A distância que poderia existir entre o eu
que se nutre de imagens e o produtor dessas imagens é abolida, com o eu situando-se
nessa imagem aparentemente externa – a do seu semelhante -, mais do que no
sentimento consciente de mim mesmo. O sujeito não pode deixar de confundir-se
com seu semelhante, tornando-se em seu duplo e procurará nas imagens externas a
verdade sobre si mesmo.
É então nesse jogo de olhar, via imagem do outro, que pode
constituir-se a instância imaginária. Se nessa relação com o outro o eu for
preponderante, o objeto fica evanescente; se o objeto for preponderante
(gerando o fascínio – desejo/olhar da mãe no irmão mais velho, no caso dos dois
irmãos com mesmo nome), o eu fica ameaçado. Haverá que ter uma relação
simbólica necessária entre o eu e o objeto como possibilidade de escape a essa
fascinação: sem o simbólico, o mundo permaneceria em uma ordem enlouquecida, um
caos de imagens (melhor emprego, melhor casa, melhor amante) sem ordem
(Garcia-Roza, Acaso e repetição em psicanálise).
Mas se esse outro, semelhante, é essencial para a
constituição do sujeito (de desejo), ele não é vivido de uma forma pacífica. “O
fala-ser não pode afirmar sua própria identidade, quer seja homem ou mulher,
senão ao negar a do semelhante” (Melman, Estudos sobre a histeria). O que pode
tornar-se uma faca de dois gumes, pois se o eu se forma no outro e a ele mantém
ainda ligada sua possibilidade de identidade, ao negá-lo pode acabar negando a
si mesmo; ao negar-se a felicidade do outro, pode-se acabar colocando em xeque
a certeza de sua própria. Daí a inquietude que a presença do semelhante poderia
provocar.
O que surge então é a possibilidade de uma agressividade
direcionada a esse outro, que é constitutiva do ser humano, comandada
justamente pelo estádio do espelho. Agressividade que deve conquistar seu lugar
sobre o outro e a ele impor-se sob pena de ser aniquilado. Já indicamos que
essa agressividade nasce com o aparecimento dos ciúmes fraternos. O risco é que
nesse outro (fratris=irmão) que se tenta destruir está o próprio eu. Na ânsia
de livrar-se dele, dessa captura imaginária, corre-se o risco de ficar-se sem
um ancoradouro do nosso próprio desejo, não existindo um outro para poder se reconhecer
nele a si mesmo.
Nessa dialética da subjetividade, de reconhecimento
recíproco, reconhecer-se somente em função do outro, é que está em jogo a
verdade do sujeito (Dör, Introdução à leitura de Jacques Lacan). Nessa
vacilação, então, pode haver um recuo quanto a atentar contra a imagem do
outro; no entanto, sempre se o agride, seja de que forma for. “A violência é
sempre sustentada pela identificação ao outro” (Lacan, Complexos familiares).
O que um irmão vê no outro e inveja é a possibilidade do
acesso ao objeto suposto do gozo, aquele que eventualmente poderia completar a
mãe. Nesse jogo imaginário ambos podem ser destruídos: destruindo a vida de um,
o outro não teria mais como viver, não só em função da lei dos homens, mas em
função da lei do próprio desejo.
Poder-se-ia questionar agora a contribuição que a homonímia
dos dois irmãos teve para o desfecho trágico de sua relação, o que poderia ter
sido afetado por essa promessa da mãe em relação a constituí-los como um e
mesmo em função do nome.
Podemos dizer que o nome, sua unicidade é sinal daquele que
fala. Poderia ser um presente que se recebe ao se entrar no mundo dos viventes,
dos falantes (e faltantes), marca sobre a criança do desejo dos pais. Nome que
resistirá a toda aparência e que continuará mesmo depois da morte daquele que o
porta. Deixando um traço que atesta um dizer, o nome permite que se disponha de
um referencial aparentemente seguro da identidade e da singularidade. O nome
marca então o Um, que se é único, diferente, em seu nome, de todos os outros
com seus nomes singulares. Tanto que encontrarmos pela vida nossos homônimos
não é algo que nos deixe de causar certo choque.
Segundo Pommier (A ordem sexual), o nome patronímico, ou o
sobrenome, oferece uma barreira contra a perda da identidade no anonimato e no
coletivizável do grupo social. Se ele é o que permite diferenciar-se dos
homônimos pelo prenome, não nos livra da diferenciação quando a homonímia
também se dá por ele (o que não é difícil quando se tem prenome e sobrenome
muito comuns – o que as redes sociais também facilitam hoje em dia: que se
encontre seus homônimos tanto em nome quanto em sobrenome). Já o prenome está
sob a influência da analogia, senão da identificação imaginária, da promessa e
também pela via da homenagem; e é nessa qualidade, na maioria das vezes, que
ele é concedido e discernido (receber o nome por causa do avô, do ator famoso,
do político de renome, do irmão que não vingou, etc). Pode designar ainda o eu
ideal, o ponto de identificação imaginária, enquanto o nome de família vem do
pai, ponto de identificação simbólica, onde o outro é inimitável, ponto em que
se escapa à semelhança (Pommier, idem).
Haveria diferença entre uma cultura em que o prenome seja
mais importante que o sobrenome e outra em que isso funcionasse ao contrário?
Será que não bastaria nosso patronímico para assegurar a identidade, sem que
tenha que haver diferença quanto ao prenome? Ao considerar o patronímico como
metáfora do falo, teremos dado um primeiro passo na compreensão da importância
do nome na rivalidade entre dois irmãos.
O termo “bárbaro” é uma herança grego que chegou até nossos
dias. Segundo Heródoto, os egípcios chamavam de bárbaros todos os que falavam
uma língua diferente da sua. Em grego, aliás, o termo quer dizer
“incompreensível”, ou mesmo ‘aquele que balbucia ao falar’. O termo chegou até
nós modificado em seu sentido, carregado com a agressividade, com o horror
acumulado por nossa história recente. Hoje bárbaro não é simplesmente o
estrangeiro, mas aquilo que extrapola o tanto de agressividade que somos
capazes de suportar. O que o termo parece ter sempre marcado é a questão da
diferença e todo mal estar que gira em torno dela, e que, provavelmente, um ato
bárbaro seja uma posição absoluta de tentar eliminar essa diferença a qualquer
custo.
Afirma Freud em um texto seu de 1924 (Uma breve descrição da psicanálise)
que é a exigência externa real a força motivadora do desenvolvimento cultural,
que retirou do homem a satisfação fácil de suas necessidades naturais e o expôs
a ameaças mortais. Essa frustração externa fez com que ele começasse uma luta
com a realidade, adaptando-se finalmente a ela, na tentativa de controlá-la. Mas
isso também o impeliu a ter que conviver com seus semelhantes, o que o fez
renunciar a certos impulsos impossíveis de serem satisfeitos socialmente. Apesar
disso, muitos impulsos ainda continuam a insistir quanto à sua satisfação. Em 1925
(A resistência à psicanálise) ele acrescenta que a sociedade estabelece um
ideal elevado de moralidade pela restrição aos impulsos, forçando todos os seus
membros a seguirem esse ideal, reprimindo seus impulsos, seguindo massacrados
em seus desejos insatisfeitos, o que gera sintomas diversos. Mas, ao exigir uma
renúncia tão grande dos indivíduos, de forma alguma a sociedade teria como
compensá-los com relação a isso, eles mesmos tendo que correr atrás de uma
compensação, o que os capacita a preservar seu equilíbrio psíquico. O sintoma
estaria aí, de alguma forma, para situá-los com relação a essa possibilidade. Freud
chama a essa falha da cultura de “hipocrisia cultural”, onde a renúncia é
sempre maior que a recompensa, mas que não haveria outra forma de se preservar
o amor vindo de nossos semelhantes.
Se essa hipocrisia é uma armadilha onde o homem cai ao
tornar-se um ser civilizado, poderia haver ainda uma outra, apontada por Finkielkraut
(A derrota do pensamento), que é constituída pelas promessas enganosas do
Cogito, que pregariam a liberdade e a vitalidade do indivíduo. Mas a História
mostra que indivíduos que deveriam sair de sua minoridade são esvaziados de seu
ser, que o sujeito não é livre, mas ressecado, desvitalizado pela ordem social
e de seus desejos de mudança do estado estruturado. Se há uma dispersão dos
sistemas de pensamento e das práticas sociais, o homem morre como sujeito
autônomo e transforma-se no campo de ação de forças ou de estruturas que
escapam à sua apreensão consciente. Cita Foucault: “Onde há palavra o homem já
não existe mais”. Seu nome próprio desaparece no nome de sua comunidade, ele
sendo não mais que uma amostra, o representante permutável de uma classe
particular de seres.
Mas seria realmente a barbárie um sinônimo de modernidade? Existiria,
como pergunta Rosenfield (Do mal), um télos maligno percorrendo a história do
século XX? Seria a experiência totalitária uma experiência possível somente do
nosso tempo? Assujeitamento do sujeito, desrazão humana, escravidão, guerras,
seriam esses os sinais de barbárie? Se são, então poderíamos pensar que ela não
é um fenômeno contemporâneo, ou mesmo moderno, mas que tem acompanhado a
humanidade em todo seu desenvolvimento.
Que podemos concluir de tudo isso? Parece haver conflitos insolúveis
quando se coloca frente à cultura a questão do desejo humano, da agressividade ‘inata’
que o indivíduo carrega dentro de si. Se a inclusão em uma comunidade humana ou
a adaptação à sociedade aparece como requisito que deve ser cumprido para se
alcançar o objetivo da felicidade, então essa agressividade tem necessariamente
de ser obstáculo, certamente o maior, à cultura. Devido a essa primordial hostilidade
entre os homens, a sociedade civilizada vê-se constantemente à beira da desintegração
(Freud, Mal estar na Cultura). E eu concordo com Finkielkraut (idem), quando
ele afirma que o vocábulo “cultura” sirva provavelmente de estandarte humanista
para a divisão da humanidade em entidades coletivas insuperáveis e
irredutíveis, aí sim situando-se a verdadeira morte da liberdade individual. E se
a agressividade é a tentativa que analisamos como forma de se sair dessa
desvitalização, “em direção a que meta avança o gozo para ter de apoiar-se na transgressão
a fim de ter êxito?” (Lacan). A possibilidade de restaurar na realidade a
harmonia do seio materno... através do fratricídio!
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