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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Lacan, sobre a cadeia significante no inconsciente

 


Seminário 6, O desejo e sua interpretação, 1960, p. 62: É claro que vocês já veem, não aonde quero chegar, mas aonde chegaremos necessariamente. Embora Freud em sua época se encontrasse numa situação em que as coisas podiam ser ditas num discurso científico, esse Vorstellungsrepresentänz, vocês já devem estar percebendo, equivale estritamente à noção e ao termo de "significante".

Nesse ponto de seu percurso, o significante seria comparado por Lacan ao representante da representação em Freud, ao que do inconsciente (recalque primário) consegue escapar por algo que não é a coisa mesma recalcada, mas que faz seu retorno de modo representado, ludibriando a censura e dando as caras na consciência.

Subversão do sujeito e dialética do desejo, Escritos,   p. 813: O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e na cogitação a que ele dá forma. Idem, p. 831: ...Eis agora, com efeito, nossa atenção solicitada pelo status subjetivo da cadeia significante no inconsciente, ou melhor, no recalque primário (Urverdrängung).

Em 1960 Lacan localiza, como ensaio, no texto de Freud uma cadeia significante no inconsciente e que aparece no discurso do sujeito, em seus lapsos e buracos. Essa cadeia significante insiste e se repete a partir do recalque primário.

Seminário 21, Os não-tolos erram / Os nomes do pai, aula 13/12/1973: Ainda que eu tenha dito, em alguma parte de minhas garatujas, as primeiras, Função e Campo, isso não era, lá, tão estup...Disse em Função e Campo que formavam cadeia. É um erro, porque para decifrar, foi preciso que eu fizesse algumas tentativas, daí essa estupidez.

Não encontrei a passagem em Função e Campo e sim em A subversão do sujeito. No seminário 21, nesse trecho, afirma que a linguagem não é saber e sim efeito da relação entre S1 e S2. O saber seria a consequência de que não há um Outro, em que S2 não se relacionaria com S1, não formando uma cadeia. A partir disso, nega as afirmações do texto de 1960 de que haveria uma cadeia significante no inconsciente. Estaria colocando aí que haveria um saber inconsciente, formado apenas por um enxame de S1? Como S1 de lalíngua, em que se pode afirmar que há o Um, mas que não há Outro, o que também poderia fundamentar a impossibilidade de se inscrever a proporção sexual.

Segundo Harari, em seu livro Por que não há relação sexual?, Lacan pode fazer essa objeção à afirmação de 1960 em função da clínica que desenvolve a partir da lógica borromeana, que lhe permite conceber um tipo de relação diferente daquela da cadeia significante. A clínica borromeana pediria a independência mútua de dois elos iniciais, indicando uma autonomia do material do significante. 

 

domingo, 11 de agosto de 2024

A aletosfera das latusas


No seminário 17, aula 11, denominada por Miller “os sulcos da aletosfera”, Lacan afirma que nada se sabe do objeto a, e é como falta a ser que ele se manifesta no ser vivente, no que ele viria a chamar de falasser.

Mais à frente na mesma aula aponta que à medida em que o campo (do saber?) se estende pelo fato de a ciência desempenhar, talvez, a função do discurso do mestre, não sabemos em que grau cada um de nós é determinado primeiro como objeto a. Que se constrói uma ciência que nada mais tem a ver com os pressupostos que desde sempre a ideia de conhecimento implicava, isso tendo mudado pelo simples jogo de uma verdade formalizada ou de uma verdade puramente lógica da ciência atual.

Nesse ambiente que tem relação com a ciência moderna, com as consequências da verdade formalizada, Lacan indica que deve haver algum lugar onde estamos incluídos sem saber até agora e não operando com isso (objetos a ou semblantes dele). Lembremos que em 1970 (ano do seminário 17), época do avanço da conquista do espaço, muitos objetos já estavam circulando na estratosfera ou noosfera, daí ele proclamar essa aletosfera.

Aletosfera: de Aletéia (em grego clássico: ἀλήθεια; romaniz.: Alétheia; lit. verdade, no sentido de desvelamento: de a-, negação; e lethe, "esquecimento"), para os antigos gregos, designava a verdade e a realidade, simultaneamente; verdade sendo a manifestação daquilo que é ou existe tal como é.

Aletosfera (esfera, lugar da verdade) é onde se vai alojar tudo aquilo que está em relação com a verdade formalizada da ciência. Nossos movimentos estão em relação às verdades que podem ser deduzidas, formalizadas a partir do avanço da ciência. Nesse caso, o real da verdade formalizada.

Nesse mesmo seminário Lacan fala das latusas (lathouse), igualando-as e diferenciando-as dos objetos a. Elas são objetos fabricados com relação a essas verdades que se desprendem da ciência, são os produtos que na aletosfera existem como objetos a, são objetos não viventes, fabricados, mas que existem na aletosfera. As latusas não são objetos a, mas podem estar como tal, objetos fabricados no interior do mal-estar da cultura que podem funcionar no nível da causa, por fora do sujeito.

Como objetos fabricados, produtos do discurso científico, as latusas sustentam certo nível de ocultamento da verdade, assim como o objeto a permite o mesmo efeito (por exemplo, no lugar da verdade no discurso histérico pode estar tanto o objeto a quanto uma latusa no ocultamente de seu desejo).

Se a latusa funciona como causa, resulta que o lugar da verdade não é uma materialidade, porque a latusa é resultado de um desenvolvimento de uma verdade formalizada, mesmo que seja em si material; por isso essa causa nunca passa a ser material quanto a latusa, ficando somente no nível formal. Assim, nas latusas não há efeito de linguagem (exceto a que está em relação a uma verdade formalizada) e não há a possiblidade de fazerem semblante e interrogarem o sujeito através de sua causa material.

O mundo está cada vez mais povoado de latusas, como objetos da promessa do discurso capitalista como S1. Essa substituição maníaca do objeto, promovida pelo discurso do capitalista, buscaria afastar a angústia da falta a ser, assim como o luto gostaria de superar a angústia traumática decorrente da perda.

E quanto aos pequenos objetos a que se encontra imajados em todas as telas de que dispomos (eles mesmos como se objetos a), atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de todos, na medida em que agora é a ciência que os governa, podemos pensar neles como latusas (ou mais recentemente como “gadgets” ou “gismos”). Esses produtos existem para tapar a boca com relação a algo que não possa ser dito (sobre a falta?).

O analista se encontra com pacientes confrontados com suas latusas, como aquele viciado em jogos eletrônicos pelo celular que prolonga seus olhos, ou por uma motocicleta que quase faz simbiose com seu corpo, ou em uma arma que prolonga o braço do indivíduo. Todos eles podem momentaneamente trazer satisfação, mas sempre apontam para a falta com o que eles têm de se confrontar.

Na última parte de seu texto A Terceira Lacan afirma que a ciência nos dá alguma coisa para colocar no lugar do que nos falta na relação, na relação do conhecimento, coisas que se reduzem a engenhocas (mais um nome para latusas), dando como exemplo a televisão e a viagem à lua. E que o futuro da psicanálise dependeria do que adviria desse real, da vantagem que essas engenhocas ganhassem, no sentido de sermos nós mesmos animados (anima, psiquê) por elas. E que ter uma delas já era para ele um sintoma.

Questões a serem pensadas: a posição do analista como a, como causa do desejo, coincidiria com a latusa? Um analista IA, totalmente eletrônico, estaria no lugar da latusa? O analista estaria na aletosfera, como uma fábrica de analistas?

Texto baseado em partes do livro de Norberto Ferreyra, El outro insomnio: deuda y antecedência en psicoanálisis, Ediciones Kliné, Buenos Aires, 1993.

 

QUAL É A DA PSICANÁLISE COM A QUESTÃO SOCIAL?

  1-O atendimento psicanalítico geralmente é realizado num consultório fechado, de forma individualizada. O paciente é convidado a falar liv...